Postagens

Instrumental, de James Rhodes

Imagem
Por Pedro Fernandes Por que escrevemos? Esta talvez seja a pergunta para a qual mais se ofereçam respostas e as quais menos consigam compreender uma resposta certeira, no sentido de única e convincente. Há duas respostas, entretanto, recuperáveis aqui que dialogam diretamente com esta autobiografia de James Rhodes. A primeira, do poeta português Fernando Pessoa, compreende o ato de escrever enquanto salvação da alma; a outra, da escritora brasileira Clarice Lispector, para quem o ato de escrever confunde-se ao de viver porque um e outro se mantêm pela mesma força – fazer fazendo-se. Essas duas acepções se relacionam com Instrumental porque é a vida em todas as suas contradições e dramas o que James Rhodes deseja fixar quando decide passar tudo a limpo. A vida, a escrita – e acresça, agora, a música – existem existindo. E, logo se vê claramente que, sem a escrita, este pianista inglês não teria encontrado uma via pela qual pudesse expiar uma parte do estar alheio ao mu...

A viagem de Fanny, de Lola Doillon

Imagem
Por Pedro Fernandes O filme de Lola Doillon quer prestar contas com algumas das atrocidades que sustentaram a maior de todas as irracionalidades já produzidas por humanos: a perseguição sofrida por crianças judias pelo nazismo e a vergonhosa cumplicidade assumida por diversos estados, neste caso em específico o estado francês, para com o regime ao atentar contra seus próprios cidadãos em nome de uma selvageria arquitetada pela condição perversa de um tresloucado de natureza maior.  É evidente que toda sorte de desvarios praticados contra as gentes que não preenchiam a escala de requisitos da raça ariana não teria alcançado a proporção do horror se não fosse possível contar com os tais colaboracionistas e estes foram, em grande parte, seguidores cegos das palavras de ordem do ódio fascista. Mesmo que não possamos esquecer do estágio de subjugados dos governos ante o poder de destruição nazista, fazer vista grossa aos serviçais e atribuir toda culpa contra o seu idea...

Bruno Schulz: a felicidade de um mundo impreciso

Imagem
Por María Negroni Minha ideia é aprofundar-se infância a dentro (Bruno Schulz) Drohobycz, uma cidade pequeniníssima à beira dos Cárpatos, nos confins do então Império Austro-húngaro. Aí nasce, em 1892, Bruno Schulz. Uma criança doente, com problemas nos pulmões e no coração, que aprenderá desenhar e logo saberá falar polonês, alemão, russo, iídiche. Mais tarde irá viver em Viena para estudar Arquitetura. Também fará uma estadia em Paris. Schulz está na lista daqueles escritores que, como César Moro, disseram alguma vez “Je n’ai pas de Maison”. Drohobycz é e será sempre a “República dos Sonhos”, o lugar do maravilhoso, onde é possível intimar com o vasto mundo e suas antigas fábulas. Em algum momento, não necessariamente nesta ordem, traduz com Josefina Szelinska O processo , de Franz Kafka; ilustra Ferdydurke , de Witold Gombrowicz; troca correspondências com Thomas Mann; conhece Debora Vogel, escritora e doutora em Filosofia de Lwów que havia publicado uma antolog...

Gostamos de causar danos (com o grande romance estadunidense)

Imagem
Por Paula Corroto William Faulkner, o pai de uma tradição literária estadunidense: a da degeneração Poderiam abrir nosso coração com um canivete e quase desfrutaríamos vendo correr o sangue aos borbotões. Poderiam dizer que nosso pai é um assassino ou um estuprador e talvez encontraríamos um sentido para a vida. Poderiam comentar que nossa mãe nunca nos quis, que nos abandonou na sala de parto, e nos esqueceu e tudo estaria resolvido. Por fim, encaixariam nossos pensamentos de perda e abandono, o fim do emprego, aquele namorado ou namorada que nos traiu à nossa vista vinte metros de onde moramos. E ainda assim tudo bem. Esta espessa obscuridade mental, esta descida aos infernos que às vezes propõem as neuroses se fala em muitos romances que nos últimos anos têm gozado do gosto dos leitores e da crítica. Seus escritores são os novos reis do grande romance [estadunidense]: o que dita o pensamento mundial. São os David Vann e Cormac McCarthy que bebem de outros...

Boletim Letras 360º #233

Imagem
Amigos que acompanham com muita ou pouca frequência a passagem de páginas deste blog, chegamos a um novo sábado com outra edição do Boletim Letras 360º. Jane Austen inventora de maridos. Mais detalhes neste Boletim. Segunda-feira, 31/07 >>> Inglaterra: Quando Jane Austen inventava maridos A inglesa Jane Austen, cujos romances retrataram com lucidez a sociedade de princípios do século XIX, falsificou duas certidões de casamento com seu nome. Os documentos foram encontrados nos arquivos da escritora no condado de Hampshire, sul da Inglaterra. Austen, cujas heroínas viviam presas às convenções patriarcais da época e buscam no casamento estabilidade financeira e status social, morreu solteira, aos 41 anos, em 1817. Os documentos compõem parte de uma exposição que marca o bicentenário sem a escritora; foram encontrados no registro civil de Steventon, onde passou sua juventude. Neles, um casamento com um tal de Henry Fitzwilliam, de Londres e com Edmund Mort...

Inconformismo quixotesco

Imagem
Por Rafael Kafka Dom Quixote. Julio Pomar. O que há de cômico em Dom Quixote há de absurdo na existência: ela não se basta e não nos basta. Por isso, precisamos dar arte, da literatura mais especificamente, que por fazer da linguagem arte, da nossa fiel companheira até em momentos mais banais de nosso viver um objeto de prazer, torna-se um panorama favorável de sensações transcendentais. Dom Quixote é o típico sujeito que literalmente fica doido de tanto de ler. Mas Cervantes em seu romance – vamos chamá-lo assim – não defende a não leitura, como dia mais se faz hoje em dia. Pelo contrário: em um mundo onde cada vez mais a arbitrariedade do discurso se evidenciava, como bem mostrou Foucault em seu breve comentário sobre a personagem quixotesca – o autor desenvolveu uma personagem que procura romper a ordem das coisas, sublimando a existência em algo grandioso e perfeito. Podemos dizer que em Dom Quixote vemos uma atitude similar à um de cinzento Antoine Roquentin: a ná...