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A noite da espera, de Milton Hatoum

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Por Pedro Fernandes A primeira referência que saltará aos olhos do leitor diante o nome do protagonista do romance de Milton Hatoum é a personagem de Iracema , de José de Alencar. É possível que não haja quaisquer determinações propostas pelo romancista, mas na tessitura textual, ou mesmo no nosso imaginário literário, essa relação, tal como a dos irmãos Yakub e Halim que remetiam aos irmãos Esaú e Jacó de Machado de Assis, não deve ser desprezada. No romance do escritor cearense, que trata sobre a formação do ideal de nação no Brasil, Martim refere-se à figura histórica do primeiro colonizador da colônia do Ceará e significava a presença do colono português e suas tradições na constituição desse ideal – do que muito mais tarde chamaremos de identidade. É cedo para apontar relações mais concretas entre a personagem de Milton Hatoum e a de José Alencar. A noite da espera é o só o primeiro dos três volumes de O lugar mais sombrio . Este lugar mais sombrio, entret...

O outro Drácula de Bram Stoker

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Por Bruno Pardo Porto Fotograma de Drácula , de Tod Browning e Karl Freund (1931). Durante mais de cem anos passou despercebido, descansando num idioma que não era o seu, parecendo que era o mesmo de sempre, esse que passou pelo mundo literário em 1897 e inaugurou a febre pelos vampiros. Mas não. O Drácula  que chegou à Islândia era diferente do de Bram Stoker. Mas além do título – ali se chamou Makt Myrkranna  –, o livro era diferente, com uma estrutura nova, personagens desconhecidas e fragmentos de mitologia nórdica salpicados por suas páginas. Na tradução algo ficou pelo caminho e outro tanto floresceu, mas ninguém levou em conta até que Hans Corneel de Roos a cotejou com o original, despertando assim o morto, que apenas estava hibernando. Agora, esta outra versão do mito reaparece com um novo nome – Os poderes da escuridão * – e assinada por Bram Stoker. Mas como? A história é complexa e talvez existam mais perguntas que respostas. Estamos ante um relato...

Visões de Joseph Conrad

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Por Antonio Muñoz Molina Quanto mais o tempo passa, mais contemporâneo nosso é Joseph Conrad. Vivemos num mundo de identidades culturais tão heterogêneas que o último escritor que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura é um japonês que escreve em inglês e é autor de um dos romances mais densos e premeditadamente ingleses que alguém poderia escrever – Os vestígios do dia . Mas, essa tradição de entrecruzamento a que pertence Kazuo Ishiguro quem a iniciou foi Joseph Conrad, o primeiro romancista transnacional de que temos notícia: nascido na Ucrânia, filho de pais poloneses, educado em alemão, francês e russo – só começou a mergulhar na língua inglesa a partir dos 20 anos, quando se alistou como marinheiro num batalhão britânico. Um dos filmes mais universais das últimas décadas, Apocalypse Now , procede de Coração das trevas . O romance de Conrad é tão poderoso que se deixa adaptar sem perder nada de sua atmosfera nem de seu sentido desde o rio Congo nos primeiros anos da colon...

Cecília Meireles: transcendência, musicalidade e transparência

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Por Neiva Dutra Cecília Meireles em Ouro Preto. Mário de Andrade, referindo-se a Cecília Meireles, disse que ela passou – não necessariamente incólume –  pelas diversas experiências do Modernismo, mas com uma resistência firme a qualquer tipo de adesão passiva. Esta serenidade com que sua sensibilidade se moveu talvez explique a sobrevivência do pós-romantismo (muito mais simbolista que parnasiano) de sua poesia. Esta poesia, que não se enquadra nos movimentos literários pelos quais transcorreu, conserva o culto às abstrações e à beleza incorpórea, uma profunda e refinada visão da vida, os efeitos musicais e pictóricos da palavra. Propõe uma nova forma de espiritualidade, com um desapego expresso na intuição de uma realidade que transcende o afastamento, tendendo a enunciar sempre uma verdade que apenas pode ser expressada através do que não é, inclinando-se a desestabilizar os mecanismos pelos quais se compreende o sagrado. Essa forma de arte poética, bas...

Boletim Letras 360º #248

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Muito próximos de atravessar a porteira dos dez para os onze anos online, temos notícias. Os que acompanham este blog desde há muito (e leram nosso histórico) sabem que é a porta de entrada para um amplo território de ideias que aqui nasceram e estão livres na web , fazendo história. Uma das iniciativas nascidas daqui (e sempre com o intuito de chegar a mais leitores e da melhor maneira possível) foi o Selo Letras in.verso e re.verso. Era 2010, e o que primeiro editamos foi um catálogo (muito primitivo — as limitações sempre foram diversas) com fotografias do autor de Ulysses , James Joyce. Revisitamos esta ideia do selo reiteradas vezes interessados em encontrar um nome mais breve que nos representasse e agora chegamos a uma possibilidade; não é muito criativa e é, possivelmente, uma saída um bocado técnica, mas com ela continuamos essa história. Saiba mais aqui . No mais,  terão percebido os mais atentos que o endereço de morada é novo: estamos agor...

Paulo de Tarso Correia de Melo: poeta-maior

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Por Márcio de Lima Dantas A obra reunida do poeta Paulo de Tarso Correia de Melo ( Talhe rupestre : poesia reunida e inéditos. Natal: EDUFRN, 2008) comprovou o que a crítica mais especializada, não impressionista, e exigente, já sabia: é o nosso poeta-maior. Claro que temos bons poetas, oriundos das melhores cepas, porém muitos carecem de um fôlego lírico mais denso, capazes de manter a mesma alta voltagem estética em cada livro que publica, bem como a capacidade de manusear formas poéticas advindas de múltiplas tradições da literatura ocidental. Eis dois dos principais atributos do nosso poeta: tanto manuseia com propriedade o verso de fatura tradicional quanto as formas livres e brancas, desprovidas da sintaxe normativa. Acrescenta-se a isso uma notável capacidade de transfigurar por meio do discurso poético o prosaico do cotidiano, elevando as coisas ditas banais a uma categoria no qual se inscreve o primado do digno, da beleza e do lugar no qual se pode extrair um c...