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Thérèse Desqueyroux, de François Mauriac

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Por Pedro Fernandes A liberdade, no sentido mais íntimo que este termo recupera, só existe no estágio mais primitivo de solidão e na nossa existência se manifesta naquelas situações quando somos arrastados para fora de qualquer lei sem qualquer motivo aparente. Pode parecer paradoxal (e é), mas a liberdade se apresenta em parte enquanto realização das forças instintivas, desde que tais forças não se revelem enquanto instinto. Num conto nascido de uma crônica, “As águas do mundo”, de Clarice Lispector, a voz narrativa se interroga: “Por que é que um cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga”. Está esclarecido o paradoxal do ser-livre . Em Thérèse Desqueyroux , de François Mauriac, se constata o que se esconde no motivo dessa indagação clariceana. Ao perguntar-se por que um cão é tão livre, quem se pergunta compreende que a liberdade se apresenta em graus diferentes, mas o que é, por assim dizer, o mais verdadeiro, é o de um sentimento revelado no ...

Anonimato como obra de arte

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Por Manuel Vicent O filme O rebelde no campo de centeio , escrito e dirigido por Danny Strong, narra a luta de Jerome David Salinger para conquistar o sucesso literário e como o sucesso, uma vez alcançado, chegou a destruí-lo como escritor. Buscar obsessivamente a glória e depois, ao sentir-se preso por ela, precisar de se fazer invisível para sobreviver, este é o caso de J. D. Salinger, quem converteu sua fuga dos holofotes e anonimato numa obra de arte e findou famoso por negar a todo custo a fama. Salinger nasceu em Nova York em 1º de janeiro de 1919; filho de um judeu chamado Salomon, descendente por sua vez de um rabino que, dizem as más línguas, se tornou rico importando presunto. Quer dizer, na verdade, Salomon Salinger foi um honrado importador de carnes e queijos da Europa. A empresa Hoffman, para a qual trabalhava esteve envolvida num escândalo, acusada de falsificar furos nos queijos bola, mas disso Salomon saiu indenizado e acabou por ir viver num luxuoso a...

Testemunha da glória e da tragédia

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Por Ibon Zubiaur Ilustração: Raúl Arias Federico García Lorca foi talvez o maior talento lírico e dramático do século XX na Espanha. Apesar da lenda que durante muito tempo quis apresentá-lo como um gênio inspirador, popular e espontâneo, seu estilo é altamente elaborado: revisava constantemente seus trabalhos, demorava-se muito neles antes de entregá-los para a impressão e nunca deu um discurso sem ter cuidadosamente escrito o que iria falar. Sua maturação literária é lenta; e embora já em suas obras da juventude mostre uma voz singular, pode trabalhá-la e modificá-la sem grandes pressões. Isso porque, não é possível esquecer, Federico viveu quase toda sua vida sob as asas dos pais. Isto não é um motivo de vergonha. Constitui, sensivelmente, um privilégio que o poeta granadino soube aproveitar para seu crescimento. Sua dedicação à escrita foi empenhada e contínua; sua fidelidade a esta vocação o faz admirável e o redime de outras características suas com frequência su...

Sophia de Mello Breyner Andresen, “um tumulto de clarão e sombra”

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Por Eduardo Moga A poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen é objetiva e solar, celebrativa e áurea. Uma “exalação afirmativa” percorre desde seu primeiro livro, Poesia , publicado em 1944, até o último, Mar , aparecido em 2001. É uma característica singular, que a distingue do resto da lírica contemporânea, presa na introspecção elegíaca, no lamento do eu. A poesia de Sophia, como os romances de Mark Twain, transmite um sentimento de felicidade: é alegre e firme; parece encontrar gosto no mundo.  Em seus primeiros livros – Poesia , Dia de mar , Coral – essa satisfação se apresentava com inequívocos tons românticos, que descreviam uma personalidade cristalina e fúlgida, ansiosa por se encaixar nos fractais do real. Mas esta realidade não é dolorosa e sim amável, angélica; e ela recorre à condição de poeta para ser: “Procurei-me na luz, no mar, no vento”. Este alexandrino ilustra alguns dos motivos aos quais recorre Sophia de Mello para representar seu abraço com o ...

Boletim Letras 360º #277

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Gostamos tanto da experiência de 2017 em trazer novos colunistas para o Letras, que, em breve, divulgaremos outra chamada; agora para garantir outros nomes no ano vindoura. Então, aqueles que guardam interesse em compor um grupo cujo trabalho é escrever sobre temas, formas e obsessões da literatura, falar sobre livros e filmes assumidamente interessados em compor parte no amplo universo que considera a arte enquanto expressão estética e política, estejam muito atentos – uma oportunidade baterá à sua porta. Recado dado, eis então as notícias desta semana divulgadas em nossa página no Facebook:  Reivindicam um prêmio Nobel de Literatura para Federico García Lorca Segunda-feira, 04/06 >>> Brasil: Três novos títulos da poesia completa de Max Martins Há três anos, cf. temos acompanhado, a Editora da Ufpa tem apresentado aos leitores brasileiros a reedição obra a obra do poeta paraense numa coleção de luxo que inclui inéditos e ensa...

Quando a conjuntura me força a rever um ponto de vista

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Por Rafael Kafka Um aluno me entrega uma atividade em minha mesa. Era uma interpretação de texto de dois textos – uma HQ e um trecho de um ensaio – sobre a colonização brasileira e as políticas escravagistas. Não consigo entender bem sua letra, mas percebo que suas palavras possuem relação com um pensamento não concretizado em frases com lógica. Minha melancolia cresce: – Deverias cuidar mais de tua letra. Não consigo entender o que escreves aqui. O aluno volta para o lugar nitidamente intimidado. Percebo, então, que passei o dia todo lidando com situações que estavam me minando. Sem querer, descontei em um aluno e percebi que acabei descontando em alguns outros, fazendo discursos tolos cheios de moralismo e me irritando facilmente em situações que em outros contextos resolvo rapidamente. Não sei se isso tem alguma influência com a tentativa de reduzir o café iniciada por mim nos últimos dias. Mas olhar para a caligrafia de um aluno e perceber suas dificul...