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A única história, de Julian Barnes

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Por Pedro Fernandes “Romance: uma pequena história, geralmente de amor.” Não é um exercício gratuito o de Julian Barnes estabelecer como epígrafe de A única história , esta definição de Samuel Johnson encontrada em A dictionary of the English language , de 1755. Embora seja apenas uma entre as várias proposições cunhadas em quase quatro séculos de história, a essencialidade do romanesco jamais perdeu essa pitada adquirida no momento glorioso da forma. Não apenas por isso; o escritor inglês contorna com as tintas do tempo o tema do enlace amoroso, do seu nascimento quase sempre ao acaso à ruína, quando o sentimento, paredes-meias com o ódio a abjeção, ganha caminhos inesperados para os amantes. Em A única história reforçam-se mesmo alguns estereótipos da narrativa clássica: o amor impossível, a dedicação exacerbada dos amantes e a renovação da ideia de que mesmo ante a possibilidade de amar mil vezes, uma só experiência é a que marca em definitivo a vida dos amantes. Des...

O último suspiro, de Daniel Roby

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Por Pedro Fernandes Um leitor de Ensaio sobre a cegueira , de José Saramago, não deixará de estabelecer, à primeira vista, uma relação entre esta obra e o filme de Daniel Roby. É que aqui, como no romance do escritor português, estamos diante uma modificação radical e casual do mundo qual o conhecemos pela instauração de uma situação-limite capaz de conduzir a humanidade a uma profunda revisão de seu estágio e de sua condição. Num dia qualquer, um tremor de terra favorece o aparecimento – ao menos é este o diagnóstico primeiro apresentado pelas autoridades – de um pesado nevoeiro branco que cobre até certa altura quase toda Paris. A princípio os sobreviventes são aqueles que moram em lugares mais altos, os que conseguem se refugiar para o telhado ou pessoas como Sarah, a filha do casal Mathieu e Anna, quem, devido a uma rara doença precisa viver presa a uma câmara estéril. Com este grupo, Daniel Roby depositará o fio de esperança despontado no final da narrativa e abr...

A arte do romance

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Por Antonio Muñoz Molina Terminei de ler The other house e fiquei um tempo com o livro nas mãos, sem fazer nada, deixando que o romance se fixasse em mim, como quando termina um filme no cinema e alguém ainda está tão tomado pelo que viu que não se move do seu assento e não tem vontade de se levantar nem de sair logo à rua. (Deveria existir momentos assim num concerto, ao final de uma obra, parêntesis respeitosos de silêncio, antes do frenesi algo exibicionista dos aplausos). Depois de terminar Ther other house e de ficar paralisado por um tempo voltei ao começo e me concentrei de novo na leitura, agora com a clareza da segunda vez, que me permite dar conta de todos indícios que Henry James vai insinuando desde a primeira página. Sempre se está distraído quando se começa um romance. É como entrar da rua num lugar em penumbra. Há pormenores fundamentais que não se ver logo de primeira: motivos que se enunciam rapidamente, mas que o ouvido não sabe distinguir. Por iss...

Górki, os engenhos da alma e o novo homem soviético

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Por Javier Bilbao É verdade que a empatia não era um dos pontos fortes de Stálin, não que fosse mal em julgar a psicologia dos que o rodeavam, fosse para detectar traidores ou para se servir deles com mais eficácia. Maksim Górki o calou certa vez: “És um homem vaidoso, devemos prendê-lo com correntes ao partido”. Assim, o escritor que passou um tempo autoexilado da União Soviética, fora do alcance repressor do regime, alguém que havia mostrado em ocasiões um critério independente e que pode converter-se totalmente num símbolo da dissidência ante os olhos do mundo, terminou sendo vigiado na volta à redoma, onde teria lugar uma relação simbiótica entre o intelectual e o poder extraordinariamente proveitosa para ambos. De maneira que sua cidade natal Níjni Novgorod passou a se chamar Górki, assim como uma das principais ruas moscovitas; recebeu a Ordem de Lênin, uma mansão e uma casa de campo junto a substanciosas somas de dinheiro; foi investido do cargo de presidente d...

Boletim Letras 360º #282

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Amigas e amigos do Letras, os que nos acompanham ativamente por aqui e nas nossas redes sociais já sabem que a obra do mestre J. R. R. Tolkien está em nova casa e passa a ter novas traduções no Brasil. Se ainda não sabem, o nosso colunista Guilherme Mazzafera preparou uma post em nosso Tumblr sobre as novidades. A partir dele, nós temos duas notícias que vocês deverão amar: somos agora parceiros da editora HarperCollins Brasil e todas (anote bem) todas as obras do Tolkien que forem publicadas, ganharão texto aqui no blog e (o melhor) terão exemplares para sorteio entre vocês a partir de nossa página no Facebook. Nada a perder! Agora, passemos às notícias apresentadas durante a semana lá no nosso oásis. Agradecemos a visita. Boas leituras! Um livro reúne todas as crônicas de Clarice Lispector. Domingo, 08/07 >>> Inglaterra: O paciente inglês , de Michael Ondaatje foi coroado o melhor trabalho de ficção das últimas cinco décadas do Prêmio Man Booker. ...

Ler para ver

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Por Justo Navarro De dentro do carro não entende o que vê: em Bab el Khemis, Marraquexe, um camelo corre sobre três patas com a quarta atada ao corpo. Elias Canetti olha os camelos. Pela cara, todos parecem o mesmo e todos são diferentes. Parecem velhas damas inglesas entediadas em torno do chã e Canetti descobre alguém que lembra um parente próximo. As cidades que não são estranhas se tornam em situações de encontros imprevistos. Estou em 1954, em Vozes de Marraquexe , que Canetti publicou em 1968: ler é um modo sedentário de visitar outros lugares e outros tempos, inclusive do futuro.  Quando o viajante não sabe o idioma do lugar, necessita, desemparado, de um mediador, um guia. Olha sem entender os mendigos cegos que murmuram à sua comum litania de pedinte. Não deixa dinheiro ao catador de esmolas, e logo se dá conta de que é o mais observado dos presentes na cena, “criatura assombrosa a quem havia que explicar tudo”. Mas lhe atraem sem necessidade de intermediá...