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José Saramago, o ano de 1998

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Por Pedro Fernandes A aparição destes diários de José Saramago é um acontecimento que guarda relações muito estreitas com um elemento recorrente na sua ficção: o acaso. É o acaso que abre o terror da barbárie em Ensaio sobre a cegueira ; é o acaso que coloca em cheque a mesmidade política em Ensaio sobre a lucidez ; é o acaso que faz um homem sair à procura de sua própria identidade em O homem duplicado ; ou à procura da identidade do outro em Todos os nomes ; e os exemplos poderiam se multiplicar. O acaso é um agente de transformação, claro está. Mas, na obra do escritor português, esse transformar só é possível se pela ação humana; sem ela, o acaso é só o acaso. Foi o acaso que ofereceu a oportunidade de se encontrar um diário que nunca teria fim se as obrigações e o tempo não fossem tão cruéis para com o diarista. É verdade que este último é cruel com todos, afinal não há existência por longa que seja, que não chegue ao fim. Aqui, bem poderia juntar a frase do próp...

Uma mulher fantástica, de Sebástian Lelio

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Por Pedro Fernandes Poderíamos, no sempre interesse vão das classificações, dizer que Uma mulher fantástica é uma fábula sobre resistir. Não é o caso de acreditar que estaremos entregues a uma narrativa marcada pelo contraste entre o seu exterior, isto é, dos acontecimentos da realidade empírica, e o seu interior, os acontecimentos da realidade figurada. O filme de Sebástian Lelio é realista demais para acreditarmos nessa condição que é, aliás, de um todo questionável quando se fala sobre fábula. Não se pode, de maneira nenhuma, reduzir a compreensão da fábula à de narrativa integrada totalmente à atmosfera do fantasioso. O caráter fabular desta narrativa cinematográfica resulta de sua condição e interesse: contar uma história que, de alguma maneira, responde por uma conclusão universal porque o drama aí conformado se configura numa recorrência das mais comuns no cotidiano da história da humanidade. Também porque é o caso de, ao final desta narrativa, encontrarmos um...

Naipaul no mundo

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Por Antonio Muñoz Molina Um acontecimento simples bem contado adquire por conta própria uma qualidade de símbolo. Não é um adorno literário: é um achado cognitivo. O símbolo sintetiza e explica o real, à maneira de uma equação ou de uma fórmula química. Um acontecimento assim está no coração de O enigma da chegada , que é já em si uma síntese de toda a literatura de V. S. Naipaul, de sua ideia de mundo e de si mesmo, da origem de sua vocação literária e o processo difícil de autoconhecimento sem o qual não é possível a aprendizagem do ofício. No romance, que só o é até certo ponto, o jovem Naipaul começou enfim uma viagem que o levará de Trinidad à Inglaterra, da periferia semicolonial à metrópole. Será uma viagem longa e difícil para o estudante que não sabe nada sobre o mundo, que viveu a partida com uma mistura de exaltação e de pânico. A despedida da família foi gratificante, sufocante em sua vagareza e em sua espessura sentimental para o jovem impaciente por despre...

“Por favor, ajuda-me, meu bom Deus, a ser uma boa escritora”

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Por Cristina Sánchez-Andrade Em 1958, depois de Flannery O’Connor mergulhar no manancial com propriedades curativas do Santuário de Lurdes, disse – parafraseando uma amiga e com o sarcasmo que a caracterizava – que “o verdadeiro milagre era não contagiar-se por uma epidemia através dessa água suja”. Mesmo relutantemente, havia ido ali como parte de um grupo – “mulheres católicas levadas em manada de um lugar a outro”, como ela própria explicou – de peregrinação à Lurdes, viagem promovida pela diocese de Savannah. A escritora, afetada pelo lúpus, era consciente de que não lhe restavam muitos anos de vida e nessa viagem pela Europa quis tentar de um tudo; entre outras coisas, uma audiência com o papa Pio XII na Basílica de São Pedro. Morreria seis anos depois, mas em todo caso o acontecimento ilustra perfeitamente duas importantes chaves de sua escrita: a ironia e sua dimensão religiosa. O primeiro aspecto é algo que salta à vista numa primeira leitura de sua obra. O...

Boletim Letras 360º #296

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As notícias que copiamos da última segunda a sexta-feira em nossa página no Facebook estão, como de costume há 293 sábados, disponíveis a seguir. Aproveitamos a ocasião para relembrá-los que esta é a última semana para se inscrever na promoção que realizamos em parceria com a editora HarperCollins Brasil; o sorteio de um exemplar da belíssima biografia de J. R. R. Tolkien escrita por Humphrey Carpenter acontecerá no próximo dia 26 de outubro. Para participar é muito simples .  Uma biografia de Jorge Amado chega às livrarias brasileiras em novembro. Mais detalhes ao longo deste Boletim. Segunda-feira, 15/10 >>> Brasil: Peça inédita de Ariano Suassuna ganha edição As conchambranças de Quaderna  é publicada no mês de novembro pela Editora Nova Fronteira. No dicionário regional, conchambrança significa um acordo, um combinado, um conchavo. Escrita em 1987, depois de mais de duas décadas sem se dedicar ao teatro, a pe...

Sobre bolhas sociais e debates políticos em redes sociais

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Por Rafael Kafka Ontem me peguei discutindo com um defensor do fascismo. Um defensor eloquente, não o tipo irritante de cada dia que usa das notícias falsas para propagar a defesa de seu candidato. Mas uma mente que sabia disfarçar sua ignorância com o uso bem arquitetado de alguns conceitos econômicos, os quais expuseram a mim brechas em minha formação leitora. Mesmo sendo da área de Letras, comecei a me sentir irritado por não dominar tais conceitos e usar contra aquela pessoa numa tentativa, mesquinha e egotista, de impedir que a mesma espalhe boatos por aí, inverdades tolas baseadas em cortes de direitos sociais e trabalhistas para garantir o bom desempenho numérico do país. Na mente de pessoas assim, um mercado forte e que se auto regula garante emprego, poder de compra e felicidade a todos. A desigualdade social é algo que deve ser superado por esforço pessoal e pelo Estado deixando as empresas explorarem tal esforço de seus empregados. No afã dos debates acalorados...