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Enseio

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Por Guilherme Mazzafera Há algo de instigante na saborosa percepção de Otto Maria Carpeaux (1999) sobre o grande poeta francês François Villon: dono de uma vida das mais desregradas, na qual se misturam toda uma variedade de petit crimes , impropérios e violações (pode um assassino escrever um bom poema?), sua lavra de versos é uma das poesias mais ordenadas e conscientes de que se tem notícia. Haveria, em tal fenômeno, um secreto jogo de compensações em que, à vida fragmentada, contrapõe-se a ordenação possível da arte. Separados por um século, a escrita de Montaigne talha caminho semelhante, embora oposto – o retiro determinado para sua biblioteca para pensar, refletir e escrever constitui um prolongado memento mori que, em diálogo profundo com as vozes do passado, encontra seu caminho pela expressão sincera e cuidadosa de uma verdade pessoal que, mediada pelo critério da razão, se expõe como inédita perspectiva autorizada. A dimensão ordenadora da escrita, que para...

Boa noite, amazona, de Manoel Herzog

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Por Pedro Fernandes “Havia, na insipiência de iniciante tardio, desenvolvido um método literário que consistia em fazer uma reportagem da própria vida, um confessionário. Depois de algum tempo sacava da gaveta esse acervo e começava a enxertar de fantasias ou experiências alheias. Impessoadas assim minhas histórias, dava-lhes o rótulo de ficção, descomprometendo autor e personagens.” Essa passagem de Boa noite, Amazona é parte do capítulo referido por uma carta do tarô de Marselha intitulada “O Mago”; trata-se de um arroubo metanarrativo que oferece ao leitor alguma chave para acesso ao caudaloso e, por vezes, irreal e inverossimilhante, universo de um narrador incapaz de narrar porque tomado por uma crise de criatividade, o que é apenas uma pequena parte de outra crise de ordem pessoal. A princípio, poderá o leitor acreditar que se situa no interior de uma confissão muito à vontade desse narrador sobre uma viagem empreendia pelas sendas da região amazônica de Manaus; ma...

O anjo, de Luis Ortega

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Por Pedro Fernandes É verdade que as cinebiografias se inscrevem no rol das criações mais difíceis. Mas, o erro mais grotesco cometido por cineastas de toda parte é querer se aproximar ao máximo da verdade histórica e construir uma narrativa que seja estreitamente a vida do biografado e, como se isso não fosse a pura aberração, ainda insistem em obrigar todo o elenco principal a se integrar nas feições originais das figuras originais. Esquecem-se que nenhuma obra é capaz de reportar integralmente o passado; este é uma lembrança que não volta mais. O ponto de partida e situações diversas vividas no interior da ficção são originais, mas o resto será sempre produto da imaginação criadora. Tentar alcançar o inalcançável resulta uma obra de falso brilho, caricata, e coloca em falso a própria verdade que se quer apresentar, sobretudo, se essa for o perfil biográfico de alguém. Nossa natureza é continuamente contraditória, por isso marcada por matizes discrepantes, e os autore...

Primo Levi, entre o horror, a palavra ou o silêncio

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Por Sergio Nudelstejer Em abril de 1987 recebemos a triste notícia sobre o suicídio do escritor Primo Levi. Quando um escritor se suicida é difícil não reinterpretar seus livros à luz de seu último ato. E a tentação é particularmente forte no caso de Primo Levi, já que grande parte de sua obra nasceu de suas próprias experiências em Auschwitz. O calor e sentido humano de seus escritos o converteram num símbolo para seus leitores; no símbolo do triunfo da razão sobre a barbárie do genocídio. Mas, para alguns, sua morte violenta questionava esse símbolo. Em certos casos, o suicídio de um escritor é visto como a conclusão lógica de tudo o que escreveu ou como uma contradição irônica, mais que o resultado de uma tormenta puramente pessoal. Primo Levi apareceu como um dos intelectuais mais incisivos e mais francos entre aqueles que experimentaram a dor do Holocausto e sobreviveram para narrar tudo o que viveram. Seria difícil encontrar alguém além dele capaz de exp...

Seis livros de Primo Levi que são antídotos contra o esquecimento

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Primo Levi. Foto: Basso Cannarsa. O escritor italiano Primo Levi retratou como poucos o horror dos campos de concentração nazista, depois de ter sido refém num deles durante quase um ano, uma experiência dramática que marcou sua vida definitivamente até sua morte em 1987. Nascido há cem anos em Turim, no dia 31 de julho de 1919, Levi, de origem judia, foi deportado para Auschwitz em 1944 depois de ser preso por militar junto à resistência antifascista. Naquela prisão cercada por arame farpado se tornou testemunha excepcional sobre os horrores e os crimes do nazismo, e, depois da sua liberdade pelo Exército Vermelho, seus escritos fizeram uma volta ao mundo; alguns deles ainda hoje são recorrentes nas escolas italianas como um exemplo de memória histórica. Os livros aqui apresentados são aqueles que permitem aproximar-se da figura e da visão de mundo de um dos escritores mais importantes do século XX. 1. É isto um homem? É a obra-prima de Primo Levi. Foi escrita depois...

Aldous Huxley, o psiconauta que revolucionou o futuro

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Por Samantta Hernández Escobar Sua curiosidade e rigor intelectual converteram o escritor britânico Aldous Huxley na mente perfeita para que Humphry Osmond, psiquiatra britânico conhecido por utilizar drogas psicodélicas, pudesse realizar seus primeiros ensaios terapêuticos com mescalina. O polêmico psiquiatra via naquela substância ancestral do peiote uma via para tratar a esquizofrenia. Ele estava convencido que seria mais sensível penetrar na mente de seus pacientes se estavam expostos aos efeitos dos alucinógenos. Essa premissa encantou o escritor britânico que em seus escritos sustentava que a mente do ser humano estava composta por estratos e, portanto, necessitava do auxílio de substâncias externas para que alcançasse seu verdadeiro potencial. Em 1952, apegado a essas conjeturas, o escritor, quem nesse momento tinha 58 anos, se ofereceu para ser tratado pelos métodos de Humphry Osmond. No processo, Huxley encontrou a chave que o permitiu abrir a porta a realida...