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João Cabral de Melo Neto e os campos tristes de Málaga

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Por Lucas Martín O vento soprava com uma marcha ruidosa, esmorecida, sobre o canavial comum. Havia ao fundo um verão com lagartixa. O sol insuportável golpeando rudemente, com esse ritmo de umidade decadente que deixa a natureza em Málaga com a síndrome matojo peleón , embutida como uma ilhota. O poeta João Cabral de Melo Neto, em seu traje diplomático, metade sábio crioulo, metade coquetel de penas amarelas, deveria parecer, pisando nos campos, uma espécie de perversão colonial olhando a trama do novo mundo que no fundo era o velho, sobrepondo aos tons do Brasil seu português feito de pensamentos da Europa e das águas dos rios. Despertado pela paixão cigana, com uma lança de flamenco ainda ardendo no estômago, o escritor viu a paisagem da Costa del Sol e teceu um mapa impossível de associações e contrastes com o seu Pernambuco natal, onde, para crescer, até os esgotos estão dispostos a se deixar mimar pela chuva e um dia se tornar orangotangos. De sua visita a Mála...

Boletim Letras 360º #356

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Todos os anos nós publicamos uma lista com os melhores livros lidos segundo os nossos leitores. No início da semana, disponibilizamos através das redes sociais do blog, um formulário para que você possa fazer parte desse momento ao nos dizer qual foi sua leitura mais marcante em 2019. Para participar, basta ir aqui e informar nome completo, sua cidade, o título do livro e uma justificativa ressaltando, por exemplo, as qualidades e o porquê da recomendação. As listas de Melhores do Ano chegam online até o final do mês de dezembro. A seguir, as notícias divulgadas durante a semana em nossa página no Facebook.  Quatro títulos da obra do dramaturgo irlandês Tom Murphy chegam ao Brasil. Mais detalhes ao longo deste Boletim. Segunda-feira, 9 de dezembro Nova edição brasileira de  Um, nenhum e cem mil , de Luigi Pirandello . Para Vitangelo Moscarda, tudo começa com uma observação de sua esposa quanto ao seu nariz. Ele é acometido de uma intensa perplexidade ao...

Milan Kundera, o apátrida que vive na literatura universal

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Por Jesús Ruiz Mantilla Milan Kundera. Foto: Gisèle Freund Nos romances de Milan Kundera, você raramente lê a palavra Tchecoslováquia. Tampouco algo que venha do lugar. Por outro lado, não há autor vivo que tenha retratado melhor a alma efêmera de um país que mal resistiu ao seu próprio nome por setenta anos. As figuras que povoam seu mundo pertencem à Boêmia. O que também é algo redutivo para alguém que nasceu na Morávia: especificamente em sua capital, Brno, em 1º de abril de 1929. Convenhamos que, a partir da soma de ambas as terras, junto com a Silésia, existe hoje o que conhecemos como República Tcheca e que Kundera procede dessa convenção territorial, além de ter usado essa língua para criar a maioria de suas obras-primas. É apenas por isso, não porque esteve retido da nacionalidade e do seu passaporte roubados em 1979 e que seus compatriotas, não isentos de vergonha e pedindo perdão, fizeram retornar para as mãos do escritor. O episódio recente se deu na intimi...

O seminarista, de Bernardo Guimarães

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Por Pedro Fernandes Nicholas Chistiakov. The Black Pope   Toda vez que o nome de Bernardo Guimarães aparece para os leitores mais assíduos de literatura brasileira, ou mesmo para aqueles que guardem um mínimo conhecimento sobre os principais escritores e obras literárias do nosso cânone, será sempre associado ao romance A escrava Isaura . Essa associação não é, obviamente, gratuita. A história de uma escrava branca envolvida no sem-número de crueldades de um carrasco obcecado foi não apenas sucesso de vendas aquando de sua publicação como terá perdurado no nosso imaginário depois das adaptações para a TV como telenovelas: primeiramente pela Rede Globo, obra vendida para uma quantidade sem fim de países; e, mais tarde, por puro capricho de copiar sucessos, pela Rede Record. Mas, não é essa obra mais conhecida o melhor do escritor mineiro. Antonio Candido, em Formação da Literatura Brasileira , caracteriza Bernardo Guimarães como um contador de casos, uma fusão de ...

Kholstomer – história de um cavalo

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Por Davi Lopes Villaça Lendo Tolstói parecemos escutar duas vozes que se contradizem sem jamais atentar à existência uma da outra. Pois esse autor, que tão severamente investe contra os vícios humanos, é também o maior admirador da vida desregrada, guiada apenas pelos ímpetos do corpo e dos instintos. Ele nos fala às vezes como um velho cristão, sinceramente arrependido dos pecados da juventude; mas eis que, no momento seguinte, parece esquecer-se de sua conversão para recordar aqueles dias felizes de entrega, quando a consciência do pecado não havia e, por isso, tampouco o próprio pecado. Thomas Mann o descreveu como um “filho da natureza”, marcado por “tentativas imensamente desajeitadas e jamais bem-sucedidas de espiritualização moral de sua corporalidade pagã”. É tentador imaginá-lo assim como um símbolo da própria Rússia do século XIX, esse país, como o viam muitos russos, ainda mal civilizado pela cultura europeia e que vivia na nostalgia de sua antiga barbárie. Um bo...

É possível ler “A montanha mágica” em nossos dias?

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Por Karl Krispin   “...mas quando olho para trás, em retrospectiva, tenho a sensação de trazer aqui quem sabe há quanto tempo, e que uma eternidade se passou desde o dia em que cheguei e, desde o início, não percebi que já havia chegado e você me disse: ‘Você não vai descer?’” Thomas Mann, A montanha mágica Nosso mundo contemporâneo parece ter uma relação um tanto contraditória com os romances de grande extensão. Obras como Dom Quixote de La Mancha , Guerra e paz ou A montanha mágica foram acusadas de serem muito volumosas e, portanto, incompatíveis com a civilização atual que leva um tempo curto. Alguns especialistas pontuam que a leitura que melhor se ajusta à nossa era é a da ficção breve. O que foi exposto nada mais é do que uma falsidade e uma pretensão na mesma categoria daquela que diz “uma imagem vale mais que mil palavras” (por que essa frase tão reciclada nunca foi expressa com uma imagem?). A literatura do consumo em massa fabric...