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Carnaval de engenho

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Por José Lins do Rego Ilustração de Santa Rosa para texto de José Lins do Rego. O Cruzeiro , 1941. O mestre Paizinho chegara para falar com meu avô. Era o mestre de música do Pilar e o presidente do clube “Os filhos da Candinha”. A conversa era curta. Ele dava a lista, o velho assinava os cem mil réis e falava mal dessa história de vadiação de carnaval. Deviam acabar com aquilo. Homem de respeito não devia andar metido com danças, em brincadeiras de entrudo. O Chico Xavier precisava abrir os olhos, tomar providências. Havia gente na vila que só pensava em carnaval, que andava perturbando o sossego dos outros.   O mestre Paizinho ouviu tudo calado. Depois o velho entrava e voltava com os cem mil réis.   — Tome lá, dizia ele, mas não apareçam aqui no engenho. Não quero saber de patifarias. O ano passado vocês foram abusar do Lula de Holanda. Se souber de coisa semelhante, mando o Chico Xavier metê-los na cadeia.   Depois o mestre Paizinho vinha conversar com as minhas tias...

Boletim Letras 360º #366

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DO EDITOR 1. Não posso deixar de comentar na abertura deste Boletim sobre o incidente registrado no último dia 18 de fevereiro e notificado em todas as redes sociais do Letras; um anônimo – com expressões ideológicas, entretanto, muito claras – escreveu um comentário na caixa do blog no texto-resenha publicado aqui no início de janeiro de 2020 sobre o romance Essa gente , de Chico Buarque (Companhia das Letras, 2019). O episódio de grosseria não é o primeiro. Mas, com o rigor do ódio, sim. Quando divulguei a nota em nome do blog foi, primeiro, para mostrar o posicionamento meu em relação ao caso e, claro, registrar publicamente a violência, além de me colocar em defesa dos inúmeros leitores, fixos ou en passant que guardam profundo zelo pelas expressões artístico-literárias. 2. Agradeço pelas mensagens recebidas dos que acompanham a materialização de um projeto conduzido voluntariamente há treze anos. Saiba que guardo profundo carinho, e o sentimento de todos os colaborad...

Os novos livros de J. D. Salinger

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Por Cristian Vázquez J. D. Salinger em sua mesa de trabalho. Cornish, New Hampshire. Arquivo: Biblioteca Pública de Nova York 1. Digamos logo desde o começo: não temos ideia sobre quantos nem de como serão os novos livros de J. D. Salinger serão, cuja morte terá uma década neste 2020. O que sabemos pelo menos é que haverá novos livros. Isso há muito foi assegurado por alguns de seus biógrafos e só recentemente confirmado por Matt Salinger, filho do escritor, que ficou – junto com Colleen O’Neill, a viúva – encarregado de seu legado. A parede de silêncio “oficial” que pairava sobre o trabalho não publicado de Salinger começou a ruir no ano passado, após o centenário do escritor, nascido em Nova York em 1º de janeiro de 1919. Em entrevistas concedidas a mídias como The Guardian , El País e o canal da Penguin Books no YouTube, Matt disse que seu pai continuou escrevendo todos os dias, cerca de oito horas por dia, ao longo de sua vida, apesar de não ter publicado nada des...

Voltar a Levantado do chão

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Por Pedro Fernandes José Saramago em sua casa em Lisboa, finais dos anos 1980.   Levantado do chão foi apresentado aos leitores portugueses numa sessão realizada na Casa do Alentejo no dia 22 de fevereiro de 1980. Vinte e um dias antes, as livrarias e o próprio autor receberam parte dos quatro mil exemplares impressos pela editora Caminho. O número, apesar de pequeno se colocado frente às tiragens futuras da obra, foi a aposta pessoal e mortal de um editor numa casa em começo de consolidação; Zeferino Coelho, o editor em questão, já conhecia o escritor que no ano anterior lhe batera à porta para publicação de uma peça de teatro, A noite . Escrita a pedido de Luzia Maria Martins, o texto findou por ser não adaptado para a sua companhia; é o ex-jornalista Joaquim Benite, diretor do Grupo de Campolide, quem o transpõe para o palco do Teatro da Academia Almadense. O trabalho que chegou a receber o prêmio da Associação de Críticos Portugueses como Melhor Obra de Dramaturgi...

O que aprendemos com o filme "Parasita"

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Por Antonio Alves Parasita  se destacou no mundo da cinematografia não apenas por ser um filme sul-coreano e ainda assim ter conquistado várias categorias no Oscar, incluindo o prêmio de Melhor Filme (o primeiro gravado em linguagem não inglesa a conseguir a façanha), mas também por sua difícil identificação de gênero, transitando entre cenas de comédia, romance, suspense e terror. Por fim, o filme foi responsável por fazer severas e inteligentes críticas à frenética ascensão do capitalismo, abordando temas como a desigualdade social e a banalização das aparências, além de levantar reflexões sobre qual seria o verdadeiro papel e lugar de cada indivíduo na sociedade. Apesar do filme tratar de questões particulares de cada família e personagem, podemos generalizar a questão em muitos aspectos. Segundo a filósofa alemã Hannah Arendt (1906 – 1975), durante o século XIX, países como Inglaterra e Estados Unidos adotaram a política do imperialismo, que basicamente con...

A épica do naufrágio no Ulysses de James Joyce

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Por Stefano Cazzanelli Escrito entre 1914 e 1921 e publicado em 1922, Ulysses , de Joyce, é um dos livros mais difíceis já escritos. Não é um romance – embora Joyce insistisse em chamá-lo de romance – nem mesmo um ensaio; não é uma épica ou jornalismo. É tudo isso e sua superação: uma confluência de estilos, um bulício de personagens, sensações, lugares sem pés ou cabeça, em que tudo flui; um turbilhão onde se perder: a Caríbdis que Homero lançou contra Ulisses, Joyce lança para nós sem piedade. As personagens principais, Bloom e Stephen, são anti-heróis, derrotados; vítimas do mundo moderno em que os grandes ideais não têm direito à cidadania e em que apenas triunfa o decadente cotidiano. Paul Bourget, psicólogo e crítico literário contemporâneo de Joyce – muito influente nas teses de Nietzsche sobre o niilismo – definiu como decadente a literatura em que a parte predomina sobre o todo, a página sobre o livro. Flaubert, Stendhal ou Baudelaire foram exemplos desse espírit...