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A resposta que não vem

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Por Tiago D. Oliveira A convivência com os livros aproxima-nos paulatinamente de nós mesmos. É impressionante como a cada leitura conseguimos direcionar, mesmo que aleatoriamente, a narrativa ou versos, para a direção dos nossos dias. É como se cada livro estivesse em escambo com o desconhecido para pintar uma antiga sensação que consegue sempre força e renovação a cada página virada. O desconhecido. Assim, o que se guarda dos dias é também medido pelos títulos que nos observam na estante ou ainda em pensamentos. À vida. Em Meu coração de pedra-pomes , de Juliana Frank, encontramos este escambo com o desconhecido. Wanda, ou melhor, Lawanda, como prefere ser chamada, é uma jovem de 19 anos que tem uma deficiência mental e trabalha em um hospital, a partir de uma vaga conseguida por cotas, como faxineira e mora em um quartinho alugado pela tia. Tem o hábito de cultivar pensamentos excêntricos, guardar besouros em uma caixa no armário e costurar borboletas em suas calcin...

Sobre Minha Luta, de Karl Ove Knausgård

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  Por Davi Lopes Villaça Cheguei ao fim do terceiro volume da série Minha luta tentando entender o que me atraiu na escrita do norueguês Karl Ove Knausgård. No que consiste sua estranha força poética? Acho que é preciso considerar, antes de mais nada, o tipo de relação que essa obra, exemplo recente de autoficção, estabelece com o tempo e a memória. No início do primeiro volume, o autor recorda um episódio em que, ainda criança, vê o pai trabalhar no jardim. A partir da imagem desse homem ele estabelece uma ponte entre o seu eu de antes e o seu eu de agora: “Quando meu pai erguia a marreta acima da cabeça e a deixava cair sobre a rocha naquele entardecer de primavera da metade da década de 1970, fazia isso num mundo que conhecia bem e que lhe inspirava confiança. Somente ao atingir aquela mesma idade eu aprendi que é preciso pagar um preço por isso. Quando sua perspectiva de mundo se amplia, não mitiga apenas a dor que acarreta, mas também o sentido dessa dor. Comp...

Boletim Letras 360º #367

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DO EDITOR 1. Na semana seguinte, o leitor passará a encontrar textos de novos colaboradores aqui no Letras in.verso e re.verso. É a semana de estreia dos nomes selecionados da última chamada realizada em janeiro de 2020. Esteja atento. Leia, comente, compartilhe – é sua maneira de ajudar o trabalho desses autores. 2. Este boletim de Carnaval chega radicalmente light pela data em questão. Os embalos da vida pessoal, incluindo viagens, me levou (coisa que agora consigo sem culpa ou remorso) a não conseguir redigir tudo antecipadamente. Muito do material recolhido nesta edição foi copiado e revisado no celular – o que é duas vezes mais trabalhoso. Não deixo, entretanto, de honrar o compromisso. Obrigado pela companhia e, boas leituras! Publica-se pela primeira vez edição definitiva do único romance de Otto Lara Resende. LANÇAMENTOS Conjunto de textos escritos por Goethe ganha tradução integral pela primeira vez no Brasil . Divã ocidento-oriental é o resul...

Pequenas notas críticas das memórias de Raymond Aron

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Por Rafael Kafka “As ideias matam, falei, mas a beleza e fragilidade do liberalismo está no fato de não abafar as vozes, mesmo as perigosas”, diz Raymond Aron em suas Memórias , na página 780. Na frase em destaque, percebe-se bem o clima da guerra fria, com a visão da chamada democracia liberal sendo garantidora da liberdade política plena. Aron se refere nela a uma “nova direita” que já nos fins da década de 1970 visava à tomada de poder com seu discurso autoritário e repleto de xenofobia, percebida mais especificamente na figura de Benny Levy. Dentro da lógica de um liberal, as visões aronianas são coerentes igualando os posicionamentos de tal nova direita com os regimes totalitários fascistas e comunistas. A democracia liberal é vista por esse teórico como uma espécie de terceira via diante desses dois tipos de totalitarismo e uma forma de regime que permite melhorias sociais e liberdade concomitantemente. Desse modo, cai por terra certo argumento de que a dire...

Breve romance de sonho, de Arthur Schnitzler

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Por Pedro Fernandes Depois da leitura de uma manchete no jornal sobre o suicídio de uma tal baronesa D. (de Dubieski), Fridolin parte em disparada, primeiro para o suposto hotel onde ela havia sido levada pelas quatro horas da manhã e em seguida para o necrotério, a fim de confirmar se a morta era a misteriosa figura que se oferecera em sacrifício numa orgia na noite anterior para protegê-lo do mesmo fim ao qual foi condenada. Esse episódio se desenvolve tarde da noite – aliás, esse é período preferido de Arthur Schnitzler na composição desse romance – e, ao reencontrar o legista amigo, este, curioso com o interesse àquela altura, o questiona indiretamente ante a justificativa primeira que se tratava de um trabalho: “Eu já estava pensando”, diz Adler, “que tinha sido algum peso na consciência que o tivesse trazido até aqui no meio de uma noite de sono”. Fridolin assente: “É, tem a ver com consciência pesada, ou, ao menos, com uma questão de consciência”. A retomada de...

Pablo Picasso, o poeta

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“Se fosse chinês não seria pintor mas escritor, escreveria minhas pinturas.” “No final de contas, todas as artes são apenas uma. É possível escrever uma pintura com palavras como é possível pintar sensações num poema.” (Pablo Picasso) Pablo Picasso. Foto: Gjon Mili A inclinação de Pablo Picasso para as palavras, a literatura, a poesia remontam aos tempos de infância e juventude, quando redigia pequenos jornais em forma de cartas e enviava aos seus pais. Mas, só se revela como escritor a partir de 1935, quando se viu imerso numa crise sentimental e criativa, ocasião que chegou a confessar para o seu amigo Jaume Sabartés que queria mesmo largar tudo, a pintura, a escultura e a poesia, para se dedicar exclusivamente ao canto. Sabe-se que isso não aconteceu, mas no mesmo ano de sua revelação poética, André Breton o consagrava através do seu texto “Picasso poète”, publicado no Cahiers d’Art . Mais tarde, em 1954, ele organizou e publicou Poèmes et Litographies (...