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Ferdydurke, de Witold Gombrowicz

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Por Pedro Fernandes Basta percorrer o olhar desde o século de aparição e consolidação do romance até os dias vigentes para compreender o domínio da forma no imaginário criativo da literatura universal. Essa influência levou pensadores como György Lukács a pretendê-lo a epopeia da civilização ocidental. As razões para tanto não estão apenas na atualização do protótipo grego, mas na presença do romance na configuração dos modelos sociais vigentes e, claro está, na predominância seja entre criadores literários, seja entre leitores. Embora questionável à luz das leituras posteriores sobre as suspeitas da predominância da épica entre os gregos, a tese do pensador húngaro guarda implicações fundamentais para se pensar essa forma literária, sobretudo pela compreensão do romance enquanto tentativa de alcance de uma totalidade perdida. É esse movimento um dos responsáveis pela força da forma, manifesta no contínuo retrabalhar da sua estrutura e no contínuo esforço dos escritores e...

Seduzida e abandonada, de Pietro Germi

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Por Maria Louzada Pietro Germi, o grande realizador italiano, volta a se encontrar com a sua centelha de criatividade original que deriva nos anos 1960 neste Sedotta e Abbandonata . Trata-se de uma comédia, mas o assunto é sério, muito sério, e a visão do diretor italiano também, que ousa filmar uma comédia de costumes sobre a obstinada hipocrisia humana nos lugares mais remotos. Situações ao mesmo tempo hilariantes e que nos coloca cara a cara com a cruel realidade das mulheres num vilarejo da Sicília. Sem voz, sem direito ao próprio desejo ou às próprias escolhas, prisioneiras de pai, mãe, da sociedade patriarcal, de todos ao redor.  Agnese (Stefania Sandrelli), uma siciliana de dezesseis anos apenas, é seduzida por Peppino (Aldo Puglisi), noivo de sua irmã mais velha. Ela acaba engravidando. Quando a mãe (Lola Braccini) descobre conta logo para o marido don Vincenzo (Saro Urzì) que obriga o rapaz a se casar com Agnese, mas ele foge. O pai se esforça então para, a...

A resposta que não vem

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Por Tiago D. Oliveira A convivência com os livros aproxima-nos paulatinamente de nós mesmos. É impressionante como a cada leitura conseguimos direcionar, mesmo que aleatoriamente, a narrativa ou versos, para a direção dos nossos dias. É como se cada livro estivesse em escambo com o desconhecido para pintar uma antiga sensação que consegue sempre força e renovação a cada página virada. O desconhecido. Assim, o que se guarda dos dias é também medido pelos títulos que nos observam na estante ou ainda em pensamentos. À vida. Em Meu coração de pedra-pomes , de Juliana Frank, encontramos este escambo com o desconhecido. Wanda, ou melhor, Lawanda, como prefere ser chamada, é uma jovem de 19 anos que tem uma deficiência mental e trabalha em um hospital, a partir de uma vaga conseguida por cotas, como faxineira e mora em um quartinho alugado pela tia. Tem o hábito de cultivar pensamentos excêntricos, guardar besouros em uma caixa no armário e costurar borboletas em suas calcin...

Sobre Minha Luta, de Karl Ove Knausgård

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  Por Davi Lopes Villaça Cheguei ao fim do terceiro volume da série Minha luta tentando entender o que me atraiu na escrita do norueguês Karl Ove Knausgård. No que consiste sua estranha força poética? Acho que é preciso considerar, antes de mais nada, o tipo de relação que essa obra, exemplo recente de autoficção, estabelece com o tempo e a memória. No início do primeiro volume, o autor recorda um episódio em que, ainda criança, vê o pai trabalhar no jardim. A partir da imagem desse homem ele estabelece uma ponte entre o seu eu de antes e o seu eu de agora: “Quando meu pai erguia a marreta acima da cabeça e a deixava cair sobre a rocha naquele entardecer de primavera da metade da década de 1970, fazia isso num mundo que conhecia bem e que lhe inspirava confiança. Somente ao atingir aquela mesma idade eu aprendi que é preciso pagar um preço por isso. Quando sua perspectiva de mundo se amplia, não mitiga apenas a dor que acarreta, mas também o sentido dessa dor. Comp...

Boletim Letras 360º #367

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DO EDITOR 1. Na semana seguinte, o leitor passará a encontrar textos de novos colaboradores aqui no Letras in.verso e re.verso. É a semana de estreia dos nomes selecionados da última chamada realizada em janeiro de 2020. Esteja atento. Leia, comente, compartilhe – é sua maneira de ajudar o trabalho desses autores. 2. Este boletim de Carnaval chega radicalmente light pela data em questão. Os embalos da vida pessoal, incluindo viagens, me levou (coisa que agora consigo sem culpa ou remorso) a não conseguir redigir tudo antecipadamente. Muito do material recolhido nesta edição foi copiado e revisado no celular – o que é duas vezes mais trabalhoso. Não deixo, entretanto, de honrar o compromisso. Obrigado pela companhia e, boas leituras! Publica-se pela primeira vez edição definitiva do único romance de Otto Lara Resende. LANÇAMENTOS Conjunto de textos escritos por Goethe ganha tradução integral pela primeira vez no Brasil . Divã ocidento-oriental é o resul...

Pequenas notas críticas das memórias de Raymond Aron

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Por Rafael Kafka “As ideias matam, falei, mas a beleza e fragilidade do liberalismo está no fato de não abafar as vozes, mesmo as perigosas”, diz Raymond Aron em suas Memórias , na página 780. Na frase em destaque, percebe-se bem o clima da guerra fria, com a visão da chamada democracia liberal sendo garantidora da liberdade política plena. Aron se refere nela a uma “nova direita” que já nos fins da década de 1970 visava à tomada de poder com seu discurso autoritário e repleto de xenofobia, percebida mais especificamente na figura de Benny Levy. Dentro da lógica de um liberal, as visões aronianas são coerentes igualando os posicionamentos de tal nova direita com os regimes totalitários fascistas e comunistas. A democracia liberal é vista por esse teórico como uma espécie de terceira via diante desses dois tipos de totalitarismo e uma forma de regime que permite melhorias sociais e liberdade concomitantemente. Desse modo, cai por terra certo argumento de que a dire...