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Máquina Kafka

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Por Gabriela Massuh © Yosl Bergner Kafka. Por quase um século, essas cinco letras serviram para parafrasear ― se não explicar ― uma multiplicidade de fenômenos. Não só literários, mas também políticos, psicológicos, teológicos, filosóficos, existenciais e outros. O simples adjetivo kafkiano se apresenta sempre que determinada situação não tem saída, ou quando é fatal e só se permite ser remediada por uma parábola do mal. As estatísticas apenas destacam a profusão do fenômeno Kafka: desde 1960, a fábrica acadêmica que produz versões sobre o autor de A metamorfose gera, em média, um livro por semana.   As respostas que uma mesma tradição acadêmica oferece para explicar a euforia exegética em torno de uma obra tão monumental quanto breve são variadas e, na maioria das vezes, insatisfatórias. Diz-se que é justamente a fragmentação da produção de Kafka que abre sua obra a múltiplas interpretações. Na verdade, muito do que lemos hoje não foi publicado durante a vida do escritor. Outra...

João Cabral de Melo Neto, outros caminhos a se permitir pela “Poesia completa”

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Por Pedro Fernandes “O ato do poema é um ato íntimo, solitário, que se passa sem testemunhas.” Essa afirmativa de João Cabral de Melo Neto é parte de uma conferência ministrada pelo poeta oferecida em novembro de 1952 na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, no âmbito de um curso de Poética promovido pelo Clube de Poesia do Brasil. Sendo um ato que se pratica sozinho, o poeta guarda, reiterando a imagem de um demiurgo sempre a ele atribuída, toda a liberdade decorrente no tratamento criativo. E a principal atitude é a de desfiguração da realidade. É da natureza da lírica que o mundo e as coisas são transfigurados pelo eu, singularizando-se, alcançando então força que mantém sua condição circunscrita nas fronteiras próprias do objeto poético. Com esses novos elementos, o poeta desenvolve um mundo que se alimenta e é sustentado por sua voz; este mundo, disperso ou condensado, é uma unidade de significação no interior da qual se movimenta e para o qual, se quiser compreender, o leitor pr...

Verlaine e Rimbaud, o abraço maldito

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  Por Carlos Mayoral   “Dirigirei o teu ódio que me devasta Para o instrumento odioso de teus atentados” Charles Baudelaire, “Benção”, As flores do mal , 1857 Rimbaud e Verlaine. Desenho: Félix Régamey   Bruxelas, 1873. Ele mal tem trinta anos, mas um curtido Paul Verlaine sente o peso de uma vida que ameaça esmagá-lo. Um intelectual conhecido, um homem de bom nome, um burguês famoso, casado em felizes núpcias. Todas essas características, uma por uma, desaparecem do outro lado da retrete em que seu futuro se tornou. Não há Paris que sustente sua intelectualidade, nem sobrenome que a rotule com dignidade. A burguesia o despreza, para dizer o mínimo em favor da própria burguesia. E sua companheira, Mathilde, foi embora antes da penúltima surra. Ele é, para resumir em poucas palavras, um homem destruído.   Dentro do velho motel onde Verlaine se abriga em Bruxelas, não há espaço para o desespero quase doentio que o exauriu por semanas. Olha sua figura nua no espelho e v...

Boletim Letras 360º #406

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    DO EDITOR   1. Saudações, leitores! Na sexta-feira, 27, este blog cruzou a linha do seu décimo quarto ano online. Nada mal, repito sempre, para um espaço que nasceu para servir a um propósito e permaneceu até se tornar este bonito rapazote. Espero ainda contar muitos outros aniversários e sempre em melhor forma. Quando isso já não for possível, também, coloca-se um ponto final e não se fala mais sobre.   2. Nesta longa caminhada, nunca cansarei de repetir os agradecimentos sempre necessários pela companhia casual, fiel ou esporádica dos leitores. Você que me lê agora sabe que o propósito meu e dos que escrevem comigo a jornada do Letras é um apenas: fazê-lo se encantar pelo universo, diverso e rico universo, da literatura e suas fronteiras.   3. Abaixo, as notícias que fizeram a semana em nossa página no Facebook. A invenção denominada Boletim Letras 360º não tem a mesma idade, logo se vê, do blog. Foi criada há 403 semanas, quando os algoritmos da rede soc...

Para que serve a Filosofia (?), de Mary Midgley

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  Por Maria Vaz Mary Midgley. Foto: Leon Harris   Vivemos num tempo em que a tecnologia, a informação e, subsequentemente, o conhecimento avançam a uma velocidade vertiginosa. Por outro lado, nos dias que correm também se fala muito em especialização, na era da tecnocracia. A ciência evoluiu em vários campos, surgiu noutros que, no século passado soariam a pura magia e, com isso, teve necessárias alterações no que toca à definição de método. Da raiz etimológica que podemos ir buscar ao grego, para significar caminho, podemos dizer que, desde que percebemos que os paradigmas podem ser superados, não devíamos reduzir a ciência a empirismos demonstráveis em linha reta. Os paradigmas quebram-se, a ciência evolui da eterna nascente que é a realidade em busca de explicação. E, nesse ponto, ninguém nega a importância da ciência. Contudo, será legítimo dizer que as fontes diminuíram em tamanho ao deixarem de ser alcançadas a olho nu. Havia os microscópios que, entretanto, foram substi...

Para o meu coração num domingo, de Wisława Szymborska

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Por Pedro Fernandes Wislawa Szymborska. Foto: Judyta Papp Há uma variedade de possíveis ao alcance do poeta e todos eles materiais para um poema. Todo poema, mesmo que rarefeito, ainda é um acontecimento. Mas, a ruptura total com uma espécie de sagração da poesia foi, sem dúvidas, a mais importante das revoluções criativas colocada em curso desde sempre. Agora, se o mundo como um reino infinito, do ínfimo ao transcendente, dos materiais visíveis aos imaginativos, pode significar a grande conquista do poeta, ampliaram-se os desafios. Quer dizer, nada se tornou mais fácil; quanto mais a criação se aproxima do mundo material maior se revela a sua complexidade. Afinal, o poético nunca é pura transferência de um mundo para outro.   Tudo pode resultar num poema, mas a sua autonomia exige do criador certo domínio que consiste basicamente no convívio ao natural com sua própria técnica. Não se trata de saber os temas possíveis ao poema e sua organização formal e estrutural e sim de estabel...