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Viagem à montanha mágica

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Por E. J. Rodríguez Thomas Mann. Foto: Man Ray.   A pior coisa que pode acontecer ao tentar explicar como interpretar uma determinada obra literária para aqueles que não a leram é que dê o infeliz caso segundo o qual todo o significado dessa obra depende de uma virada final do enredo. Evidentemente que não vou descrever essa reviravolta final aqui, para não estragar a experiência de ninguém. Mesmo assim, há muito a dizer sobre A montanha mágica , a magnum opus de Thomas Mann, que colocou o escritor alemão no caminho para o Prêmio Nobel de Literatura, embora o galardão tenha sido atribuído principalmente por outros de seus grandes trabalhos, como Os Buddenbrook .   A primeira coisa que devemos ter em mente é que não é um romance adequado para quem espera uma trama dinâmica, complexa e cheia de reviravoltas surpreendentes. A montanha mágica não oferece ao leitor um domínio de emoções nem provoca grandes intrigas. A sinopse do enredo, para uma obra tão volumosa, é esmagadoramen...

Quéreas & Calírroe, de Cáriton de Afrodísias

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    Por Pedro Fernandes     Teu casamento acaba noivo conforme às preces ― Safo     A publicação de uma forma textual de designação incerta situada a partir do século I d. C. em grande parte na zona periférica da Grécia romana costuma ser tratada com o elo entre as primeiras formas antigas de narração e as que se seguiram até o aparecimento do romance. Este cânone é bastante limitado e os motivos disso são os mais variados; o lugar marginal de escrita e circulação dos textos é um deles e falamos também sobre objetos de certo apelo popular, contrapostos, portanto, às expressões da epopeia e da tragédia, dominantes desde o período arcaico e clássico.   Adriane da Silva Duarte, tradutora brasileira de Quéreas & Calírroe ,   em “Dez textos para conhecer o romance antigo” estabelece a possibilidade de agrupar os textos atribuídos ao lugar de gênese da forma romanesca em pelo menos três categorias: uma formada por narrativas de amor e aventura ou d...

O Montezuma de Oswald Spengler

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Por Anke Birkenmaier Montezuma. Pallazo Pitti, Florença (Detalhe / Reprodução) No final da Primeira Guerra Mundial, a mais devastadora para o continente europeu desde a chegada da peste negra no século XIV, o filósofo alemão Oswald Spengler se fez mundialmente famoso pela publicação de sua obra A decadência do Ocidente (1918-1922), na qual profetizou o iminente ocaso da civilização ocidental. Spengler era praticamente desconhecido até então: doutorou-se em filosofia em 1904 com uma tese sobre Heráclito e, depois, fez-se professor de colégio, aposentando-se prematuramente graças a uma modesta herança. Ao longo de seus anos de juventude, havia escrito fragmentos de obras de teatro e de romances históricos sobre os heróis clássicos do passado, sem jamais publicá-los. A decadência do Ocidente foi um golpe magistral, apresentando uma nova visão de mundo em um estilo polêmico e elegante. Escrito entre 1911 e 1914, capturava o zeitgeist do momento, ao distanciar-se de uma Europa decaída e ad...

A resposta da menina má a Vargas Llosa

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Por José Lázaro Mario Vargas Llosa. Foto: Oscar del Pozo.   Durante a preparação do meu livro Vías paralelas: Vargas Llosa y Savater. Un ensayo dialogado (Ed. Triacastela, 2020) mantive uma correspondência com o romancista peruano que foi essencial para poder escrevê-lo. E ao revisar a enorme documentação existente, descobri para minha surpresa que ele havia escrito e publicado um livro em inglês: A Writer's Reality (Syracuse University Press, 1991), frequentemente citado por seus comentaristas anglo-saxões e pouco conhecido pelos leitores de língua espanhola. Quando perguntado por que não havia sido publicado no seu idioma, ele respondeu que nenhum editor havia se interessado e aceitou de bom grado a proposta de fazê-lo e enviou à minha editora. É agora um primeiro livro de Vargas Llosa traduzido para o espanhol.   Algo semelhante aconteceu com Diálogos no Peru , obra compilada por Jorge Coaguila, da qual teve cinco edições peruanas e nenhuma em Espanha.   Os três livro...

Arapucas machadianas. Da barbárie à violência asséptica

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Por Guilherme de Almeida Gesso     Ilustração para Memórias póstumas de Brás Cubas . Mariana Rio.                 Se sobre os olhos de Capitu já foi dito serem “oblíquos e dissimulados”, não será exagero aplicar os mesmos adjetivos ao estilo machadiano, deliberadamente arquitetado para engolfar o leitor desatento numa armadilha macabra. De sobreaviso e com o “pé-atrás”, buscaremos neste ensaio comparar os expedientes dos narradores Brás Cubas e Bento Santiago, levando em consideração os artifícios enganadores de que lançam mão nos respectivos romances que compõem. Em primeiro lugar, traçaremos relações entre a infância desses personagens e as posturas narrativas que ulteriormente adotam, demonstrando que, de fato, “o menino é o pai do homem”; depois, cotejaremos os procedimentos para que fique evidente o quão perigosa é a urdidura de Dom Casmurro, a tal ponto engenhosa que torna os arroubos das Memórias Póstumas um jogo pueril,...

Louise Glück. Quatro poemas de Uma vida de aldeia (2009)

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  Por Pedro Belo Clara     Louise Glück. Foto: arquivo Williams College.       FADIGA   Dorme todo o Inverno. Então, levanta-se, faz a barba – é preciso muito tempo até ficar um homem outra vez, o seu rosto ao espelho surge todo eriçado de cabelos negros.   A terra é agora como uma mulher, aguardando-o. Um grande sentido de esperança – é isso que os une, a ele e a esta mulher.   Agora ele terá de trabalhar todo o dia para provar que merece o que tem. Meio-dia: está cansado, está sedento. Mas, se desistir agora, perderá tudo.   A transpiração que lhe cobre costas e braços é como a própria vida a esvair-se dele, sem nada que a substitua.   Trabalha como um animal, depois como uma máquina, sem a menor réstia de sentimento. Mas a união jamais será quebrada, por muito que agora a terra dê luta, bravia ao calor do Verão –   Ele agacha-se, deixando que a terra lhe escorra entre os dedos.   O Sol põe-se, chega a escuridão. Agor...