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A violoncelista, de Michael Krüger

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Por Pedro Fernandes Michael Krüger. Foto: Matthias Ziegler   “O mundo nasceu de um soluço e vai acabar num soluço. Assim como Deus se entediou ao brincar com a matéria morta, com as esferas incandescentes que, numa órbita mais ou menos precisa, zuniam-lhe ao redor da cabeça, sem um desvio perceptível ou contingência, vai entediá-lo também assistir às mascaradas sempre renovadas dos homens. E, de qualquer forma, ele não entende nada de música contemporânea. Parou em Bach.”  O autor dessas palavras, se não enfurecidas, repletas de um cortante sarcasmo, é um compositor alemão que, situado no outono da sua vida — pessoal e profissional — se mostra interessado passar a limpo uma existência devotada ao interesse continuado pela música. A essa altura, transita entre o limite de compor uma peça musical acerca da morte da lírica tendo por base a vida e obra do poeta russo Óssip Mandelstam e o contato de maneira repentina com o seu passado a partir da chegada em sua vida de Judit, a jov...

Guimarães Rosa, copidesque de Mário de Andrade

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Por Guilherme Mazzafera João Guimarães Rosa à máquina de escrever. Arquivo Conselheiro Guimarães.   “A língua portuguesa, aqui no Brasil, está uma vergonha e uma miséria”. Esta formulação se encontra em uma carta de João Guimarães Rosa a seu tio Vicente Guimarães, datada de 11 de maio de 1947. Nela, com verbo pungente e desabrido, Rosa delineia uma poética precisa para a qual a emergência de “novos tempos” exige uma postura diversa dos escritores perante sua matéria, mudança que permitiria reabilitar a arte “depois de longo e infeliz período de relaxamento, de avacalhação da língua, de desprestígio do estilo, de primitivismo e de mau gosto” (GUIMARÃES, 2006, p. 134). Não é difícil perceber nessa enumeração algumas críticas a propostas do primeiro Modernismo, em especial à noção do primitivismo, do relaxamento e avacalhação da língua propiciada por uma atitude demasiado irreverente ao estilo. Figura central do movimento e espécie de demônio tutelar de Rosa, o acerto de contas com Má...

Naufrágios, de Diego Kullmann

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Por Marcelo Moraes Caetano   Temos diante de nós uma excelente obra nova de Diego Kullmann. Seu livro Naufrágios  (Jaguatirica, 2021) revela um autor capaz de navegar linguagens, cenários e personagens tão marcantes quanto diferentes — e até díspares.   O livro desconcerta por sua anotação (seria advertência?) pré-textual: “Baseado em histórias reais”. Isso se dá porque o texto parece aproximar-se da literatura surrealista, de uma metáfora muito concreta, de obras como A jangada de pedra , de José Saramago, ou Incidente em Antares , de Érico Veríssimo. Em todos esses livros, incluído o de Diego Kullmann, o território geográfico parte de uma possível inércia e ruma em direção ao protagonismo subjacente, como verdadeiro personagem-espaço com vez e voz.   As histórias (sur)reais, assim, se trançam num emaranhado claustrofóbico, na agonia sufocante de uma cidade que o mar deixa de “costelas expostas”, corroendo e engolindo, com sua selvageria indócil, “doze quarteirões i...

“Me mataron los murmullos”: um comentário acerca da tensão entre o real e o insólito no conto “Paso del Norte”, de Juan Rulfo

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Por Felipe de Moraes   — O cassaco de engenho quando o carregam, morto: — É um caixão vazio metido dentro de outro.   João Cabral de Melo Neto, Dois parlamentos (1958-1960) Juan Rulfo em Nevado de Toluca. Autorretrato, anos 1940.      Meu objetivo neste pequeno ensaio será o de analisar, através de uma leitura cerrada dos aspectos formais, a tensão existente entre um “resíduo histórico”, portanto realista, da realidade e o insólito (ou “fantasmagórico”, nos dizeres do crítico Davi Arrigucci Jr.)  no conto “Paso del Norte”, do mexicano Juan Rulfo. Desentranhar os significados profundos contidos no relato através de sua sonoridade expressiva, sua estrutura dinâmica na forma de falas diretas, e sua divisão em três partes, são os aspectos aos quais pretendo dar mais ênfase. Sempre tendo em mente, contudo, que para um autor como Rulfo, qualquer que seja a abordagem utilizada, será sempre parcial frente a uma obra que nasceu clássica, como diz Borges, no sentido ...

Os contos de John Cheever: desejo, tragédia, redenção

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Por João Arthur Macieira John Cheever. Foto: Allen Green.     I  Desejo e literatura   Porque a literatura não é mera reprodução de sensações, mas uma experiência produtiva que acontece tanto em quem escreve como em que lê, a obra de um autor como John Cheever não está limitada ao próprio contexto cultural. A literatura também não é uma expressão essencial da subjetividade do autor, mas acontece justamente fora dela. Quando falamos de um autor como esse, é difícil não se deixar capturar pela explicação psicologizante ou biográfica do texto. Quem por acaso teve acesso aos seus diários intuirá porque toco nesse ponto: quando lemos aquelas linhas, deparamo-nos com um sujeito fragmentado, lutando para dar forma à própria subjetividade e sentido ao conjunto de sua vida. Ainda que essa seja uma marca dos personagens de Cheever e faça parte dos elementos que mobilizam suas narrativas, mas não de seu narrador. Seus diários parecem com uma tentativa angustiada de compreender ...