Postagens

José Donoso e o pássaro que devorou suas entranhas

Imagem
Por Aurora Villaseñor José Donoso. Foto: Miguel Sayago. Nem a vocação para a medicina do pai e dos irmãos, nem a aplicação à lei dos avós advogados conseguiram oferecer a José Donoso um interesse genuíno pelas pessoas. Em entrevista concedida em 1989, aos 65 anos, declarou: “Não de estar comprometido, confesso, mas não sou um homem político. A polis para mim é outra coisa, é um interesse. Sou muito mais egoísta do que tudo isso, muito mais individual, muito mais focado em mim mesmo. Estou muito mais interessado nas minhas doenças do que nas doenças da sociedade”, disse o escritor.   A intensidade com que parava de escrever era paralela a um sofrimento de úlceras que o faziam cair de cama, e que o tornaram um doente focado em seu próprio desconforto. Mas muitos anos antes de somatizar os contratempos da escrita, o chileno que fez parte do Boom latino-americano foi um inconformista que deixou sua cidade natal Santiago e fugiu para Magalhães, onde chegou resignado por não poder embarc...

Apague a luz se for chorar, de Fabiane Guimarães

Imagem
Por Pedro Fernandes   “Nós te viciamos em cuidar e, quando pareceu que seu coração estava irremediavelmente partido, o melhor a fazer foi deixar que você descobrisse outra modalidade de carinho. O cuidado consigo mesma.” A passagem está numa carta de despedida escrita pelos pais de Cecília só descoberta tempos mais tarde depois de a filha se envolver num rol de situações em parte fabricado por uma consciência perturbada justamente porque se encontra, pela primeira vez, lançada à própria sorte para o mundo.   Fabiane Guimarães soma-se, assim, a uma extensa lista de escritores preocupados em discorrer os traumas de uma geração cujas estruturas individuais são extremamente frágeis porque educadas pela força da superproteção da família. Extensão de um drama burguês com marcas que se estendem para fora de suas redomas, afinal, estamos condenados, por mais que nos esforcemos negar, ao coletivo, porque somos animais sociais, diferentes em tudo, por exemplo, dos cães que entram e sae...

No coração do mar: a história por trás de “Moby Dick”

Imagem
Por María Teresa Hernández Ainda é dia e o primeiro oficial passeia pelo convés do navio: um jovem e bonito que mais do que um arpoador remete a um herói de ação. Que essas baleias temam agora que o ambicioso Owen Chase (Chris Hemsworth) as tem na mira, porque seu mergulho gracioso e cadenciado será transformado em barris de gordura e óleo para o comércio. No coração do mar descreve a história por trás de Moby Dick (1851), mas não é baseado no romance de Herman Melville. Ao contrário, o roteiro é uma adaptação de uma obra que o estadunidense Nathaniel Philbrick publicou em 2000 para divulgar os acontecimentos que resultaram num capitão obcecado pelo assassinato de uma baleia branca: no início do século XIX, um baleeiro de onde partiu Nantucket, Massachusetts, e foi atacado por um cachalote enorme alguns meses depois.   Este poderia ser o filme perfeito, não fosse pelo fato de que o mais desejável em um filme que retrata Moby Dick — uma personagem tão desgastada como Romeu e Julie...

Escritoras do Sul selvagem

Imagem
Por Bárbara Ayuso © Jesse McCloskey Os pântanos. Os trailer parks . As mansões do algodão. Os banjos. As bocas podres. As sílabas rastejando como lama. O white trash , a escória racista. Crianças sujas amontoadas em pick-ups , peles de animais selvagens secando ao sol, macacões jeans e bonés engordurados. Rifles, sucata enferrujada, destilarias em celeiros. Bandeiras confederadas. Rednecks , senhoras do sul, suadas vendedoras de bíblias. Tudo imundo que enxameia do Atlântico ao Golfo do México: o Sul, o gêmeo do malvado dos Estados Unidos. Fascinante e repulsivo ao mesmo tempo. Que lindo o Sul quando fica feio, quanto dura da peste até a derrota. Não existe lei que o dobre, mas é assim: decadência, quanto mais furiosa, mais bela.   Com tudo isso vocês devem ter pensado em William Faulkner, é claro. Na calamidade de O som e a fúria , na obscuridade do Santuário . Ou talvez no velho Sul de Tennessee Williams, na aspereza do Truman Capote menos novaiorquino, no empoeirado Cormac ...

José Manuel Caballero Bonald

Imagem
  A literatura salva de muitas coisas, do remorso de não escrever, do tédio da vida, do silêncio não criativo... É muito comum que se não fazemos algo que realmente nos recompense, entremos de uma forma perniciosa num tédio. E disso literatura me salvou. Disso e de estar vagando por aí, sem ofício ou benefício. Escrever me justifica, me alivia. Minha energia é liberada por meio da escrita e isso me tranquiliza.   — José Manuel Caballero Bonald, Letras Libres   O leitor de poesia não tem por que ler exatamente o que o escritor escreve. Pode ir mais longe ou não. O que importa é que linguagem o proporcione uma versão desconhecida da realidade, o leve a desaprender certas coisas para voltar aprendê-las de outra maneira.   — José Manuel Caballero Bonald, El Cultural   A literatura sempre contém uma boa dose de invenção, é coisa dela. A invenção é algo que está ligado à própria dinâmica da escrita.   — José Manuel Caballero Bonald, Zenda ...

Boletim Letras 360º #429

Imagem
DO EDITOR   1. Caro leitor, o Letras apresenta a seguir as notícias apresentadas durante a semana na sua página no Facebook e o conteúdo das demais seções de leitura criadas em momento posterior à existência deste Boletim. Reitero os agradecimentos pela companhia. Boas leituras! Annie Ernaux. Foto: Mehdi Chebil.   LANÇAMENTOS O novo projeto da editora Pinard inclui dois novos títulos para a coleção Prosa Latino-americana — iniciada pelo romance venezuelano Dona Bárbara, de Rómulo Gallegos . Seu apoio pode ser dado aqui .     1. Esgotado há mais de 30 anos no Brasil, Eu o supremo foi lançado em 1974 no Paraguai e se tornou um clássico instantâneo, sendo traduzido rapidamente para mais de 20 idiomas. Até hoje, é considerado o romance mais famoso e mais importante do país — sendo também uma das obras sobre ditaduras mais representativas da América Latina. Nesse romance, Roa Bastos parte da biografia do ditador José Gaspar Francia para tentar narrar o perfil do dirigen...