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O corpo escrito de Severo Sarduy: a paixão do corpo, a paixão da escritura

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Por Gustavo Guerrero Severo Sarduy, 1971. Foto: Antonio Galvez / Arquivo: Centro Virtual Cervantes   Queria descartar de início toda interpretação biográfica ou autobiográfica do tema aqui tratado. Acredito que o melhor testemunho sobre o corpo escrito de Severo Sarduy devemos a ele próprio nas páginas memoráveis de El Cristo de la rue Jacob onde descreve suas cicatrizes e compõe, com elas, um possível relato sobre sua existência. A marca deixada por uma espinha, os quatro pontos de sutura na sobrancelha direita, a operação do apêndice, um lábio partido, uma verruga e até o umbigo são aí capítulos essenciais da vida de nosso autor, tal como quis relê-la através de seus estigmas. Cada um é signo de uma história pessoal que se dispersa fragmentariamente no tempo e só alcança uma certa continuidade graças ao suporte espacial que o corpo representa. Engenhosa e, talvez algo mais, genial, esta autobiografia dérmica limita, a meu ver, tudo o que se possa dizer stricto sensu sobre o cor...

Fernando Pessoa: empregado de escritório, ocultista, galáxia de escritores

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Por Benjamin Moser Fernando Pessoa, aprox. 1915. Arquivo: Casa Fernando Pessoa.   O surgimento de Fernando Pessoa como um dos grandes escritores modernos do mundo, merecedor da monumental nova biografia de Richard Zenith, levou quase um século para acontecer. Quando Pessoa morreu em 1935, sua família encontrou um dos tesouros literários mais sensacionais que veio à luz desde que Lavinia Dickinson descobriu 40 cadernos na arca de sua irmã falecida Emily. No típico e simples baú dos utilizados para guardar cobertores ou casacos de inverno, havia 25.000 páginas de escritos.   Alguns desses trabalhos estavam concluídos. A maioria não. Era difícil saber o que fazer com esse legado, ou mesmo o que era. Primeiramente, a caligrafia de Pessoa era notoriamente ruim. Escreveu em português e inglês, fruto de uma infância sul-africana. Mas o mais misterioso é que ele não parecia ser uma pessoa sozinha. Ele foi toda uma galáxia de escritores — heterônimos, como os chamava, com personalidade...

Boletim Letras 360º #439

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    DO EDITOR   1. Caro leitor, a campanha do Letras para arrecadar fundos a fim de cobrir as despesas de domínio e hospedagem do blog ainda continua. Como nos últimos quatro anos, foi disponibilizada a venda alguns livros neste bazar . 2. Caso não se interesse pelos livros, saiba, a partilha é já uma ajuda. Caso sim e não disponha de conta no Facebook, pode solicitar a lista através do nosso e-mail informado a seguir. 3. Você pode colaborar também com doações avulsas via PIX e com qualquer valor; basta nos contatar pelo e-mail blogletras@yahoo.com.br ou por uma das nossas redes sociais. 4. A todos que de alguma maneira ajudaram até agora, reiteramos publicamente nossos agradecimentos. E, continuamos. Boas leituras! Leonardo Fróes. Publica-se a poesia completa do poeta.    LANÇAMENTOS O quinto e último volume das mil e uma noites com histórias inéditas em português .   Envolvido pela voz de Sherazade, heroína que sobrevive noite após noite contando históri...

Ficções de verdade e o direito à (auto)ficção

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Por Mar Gómes Glez   Em um artigo no The Objective , Juan Marqués diz que em nosso país há muitas boas escritoras e escritores, mas pouquíssimos bons críticos, em parte porque se confunde a crítica literária com o jornalismo cultural, e a este com a divulgação. Depois de ler Ficciones de verdad. Achivo y narrativas de vida [Ficções de verdade. Arquivo e narrativas de vida] de Patricia López-Gay, as palavras de Juan Marqués ressoam em minha mente. E se ele tiver razão? E se com os críticos literários espanhóis se der o mesmo que com nossos profissionais de saúde, que preferem, ou necessitam, tentar a sorte em outros países para avançar em sua profissão? Patricia López-Gay é professora no Bard College, vive em Nova York há dez anos. Seu último livro ( Ficciones de verdad. Archivo y narrativas de vida ) sobre crítica literária em diálogo com as artes visuais reflete, contextualiza e engrandece um dos mais significativos modos de escrita da narrativa atual: a autoficção. À pergun...

Pão de Açúcar, de Afonso Reis Cabral

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Por Pedro Fernandes Afonso Reis Cabral. Foto: Elisa Trusso.   São muitas a convenções estabelecidas para designar o papel, as tarefas e as funções da literatura. Muitas insustentáveis, outras impertinentes, todas questionáveis. O romance de Afonso Reis Cabral se situa em algumas dessas encruzilhadas. Para agora, é possível citar pelo menos duas delas: desobrigada da verdade factual, a literatura, por sua natureza imaginativa pode corrigir determinadas lacunas da história; estabelecida em relação com os múltiplos constituintes do seu contexto, a obra literária possibilita denunciar aquelas circunstâncias que afastam o homem de seu ideal civilizatório — também um projeto, diga-se, jamais terminável.  Quando Pão de Açúcar foi publicado, mais de uma década sobre o episódio desencadeador da narrativa e do romance havia se passado: um bárbaro crime levado a cabo por um grupo de adolescentes no Porto. O rosário de violências que estabeleceu um terrível calvário para a morte pr...

Linguagem, poesia e exílio em Joseph Brodsky: esboço para um ensaio

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  Por João Arthur Macieira Joseph Brodsky. Foto: Ulf Andersen.   Há uma entrevista realizada na televisão holandesa e disponibilizada no YouTube na qual Joseph Brodsky comenta o momento quando foi avisado pelo pai da morte de sua mãe. Esse episódio também foi narrado em “A Room and a Half”, ensaio autobiográfico no qual o poeta investiga, entre muitas coisas, a relevância que tiveram seus pais e a literatura na sua formação (não apenas como escritor, mas como sujeito no mundo [BRODSKY, 1986]). Talvez justamente pela superficialidade do que desejo ressaltar aqui, certas características que fogem a(o próprio Brodsky provavelmente discordaria dessa direção). Quer dizer aqui que a forma como o poeta pronuncia as palavras em inglês — língua na qual aquela entrevista foi conduzida — podem dizer mais do que conteúdo nelas transmitido. A entonação geral é do tipo britânica, tragedie por exemplo; outras, como more , soam completamente americanizadas. Rather , contudo, parece saída de...