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Ler é o passatempo mais bonito criado pela humanidade

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Por Azahara Alonso Wisława Szymborska. Foto: SIPA   Alguns bibliófilos são tão intensos quanto os escritores. Neles coexistem as forças exemplares de quem ama os livros — desculpem a analogia — do centro e à margem, da criação à recepção: da escrita à leitura. Quase sempre partem deste último e a familiaridade com as letras acaba levando-os a tentar um papel mais ativo, criador e interessado em alcançar o cume do mundo literário. Confundem, felizmente, o pertencimento de um livro: é mais seu o que compraram ou o que escreveram? Sentem-se melhor definidos como consumidores ou como produtores da palavra escrita? Confusões e dilemas, os mencionados, sem necessidade real de resolução: também podemos viver sem uma resposta a este respeito.   A observação e a conversa, pelo menos, satisfazem parte de nossa curiosidade. Uma pergunta direta convida a uma resposta igualmente simples: se tivessem que escolher, os escritores prefeririam escrever ou ler? Embora Mark Twain (ou Benjamin Dis...

O último gozo do mundo, de Bernardo Carvalho

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Pedro Fernandes Bernardo Carvalho. Foto: Gabriela Biló.    Por vezes toda a maestria de um escritor — ou seria sua maturidade — consiste em salvar um livro de cair no precipício. É comum encontrarmos boas ideias perdidas para relatos mal ajambrados; o caso é sempre uma das recorrências maiores agora quando persiste certa posse febril por ser escritor e quando os consagrados como tal estão obrigados a trazer ao público um livro a cada ano e se possível tão inovador quanto o que lhe deu a permissão de figurar entre os nomes principais do sistema literário. A lógica escravocrata que se observa neste contexto é a mais recente dos contributos na sociedade do consumo e ameaça à própria literatura, circunscrita num tempo próprio.   Se é comum obras naufragarem pelo discurso da pressa ou mesmo por uma revisão desatenta — e isso acontece em proporções quase idênticas e nas melhores casas editoriais — é raro o contrário; isto é, uma obra que nasce condenada a não vingar mas alcança...

Possessão: a odisseia dos dramas de casal

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Por Emilio de Gorgot Alguns filmes têm a rara qualidade de gerar uma experiência cinematográfica diferente de qualquer outro. Há muito de subjetivo nisso, é claro, e cada espectador é um mundo; no entanto, acho que há algumas que impressionam profundamente quase todos os amantes do cinema. Às vezes é uma impressão tardia. Costumo citar quando Woody Allen admitiu que 2001: Uma odisseia no espaço não o agradou da primeira vez que a viu, e que só mais tarde ele percebeu que estava olhando para uma obra-prima que simplesmente não havia entendido. Kubrick estava bem à frente do que o seu público — incluindo o próprio Allen — poderia compreender. Ainda assim, há algo mágico em não conhecer os meandros de um longa-metragem. Nem todos os filmes precisam ser fáceis ou divertidos; isto é algo que uma grande parte do público atual parece não interiorizar. Como espectador, é preciso ser humilde; nem sempre estamos preparados para assimilar um filme. Muitos espectadores desdenham o que não entende...

A carta de Flaubert que inspirou “Memórias de Adriano”

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Por Manuel Llorente   “Quando os Deuses tinham deixado de existir e o Cristo ainda não viera, houve um momento único na história, entre Cícero a Marco Aurélio, em que o homem ficou sozinho.” Este fragmento da carta que Gustave Flaubert escreveu em 1861 (?) para Edna Roger des Genettes foi o que despertou em Marguerite Yourcenar a ideia que a levou escrever Memórias de Adriano (1951), seu romance mais conhecido. Assim pensou a escritora francesa: “Muito da minha vida passaria na tentativa de definir, depois de retratar, este homem sozinho e, ao mesmo tempo, ligado a tudo”.   O autor de Madame Bovary foi um livro aberto. Ao longo das quase 4.500 cartas preservadas, deixou amostras de como progredia, muito lentamente, em seus romances, as decepções, os projetos, as reflexões literárias ou mundanas. Devem ser lidas ao mesmo tempo que seus livros para compreender a complexidade de um escritor solitário, tenaz e desencantado. E durante anos marginalizado, até que em meados do sécu...

Os clássicos marginais de Josefina Vicens

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Por Mercedes Halfon Josefina Vicens. Foto: Lourdes Almeida.   O livro vazio (trad. livre para El libro vacío ), de Josefina Vicens, foi catalogado de várias formas, mas a que mais lhe convém é a de “clássico marginal”. Editado na Cidade do México em 1958 e reconhecido como obra-prima por seus contemporâneos, teve, algum tempo depois, o incompreensível destino do esquecimento. Demorou vinte anos para que sua segunda edição, no final dos anos setenta, chegasse a novos leitores que puderam apreciar a estranheza, a vitalidade, a profundidade que está escondida em suas páginas.   Josefina Vicens é uma autora central para as letras mexicanas. Uma precursora de muitos motivos e preocupações que hoje soam mais forte do que nunca. A obra publicada na Argentina quase quarenta anos depois da segunda edição mexicana inclui também o segundo romance da escritora, o belo Os falsos anos (trad. livre para Los años falsos ), este publicado quase um quarto de século após a primeira. Digamos qu...

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

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Por Pedro Belo Clara (seleção e notas adicionais)     Zeca Afonso. Foto: Arquivo do jornal Público . MENINA DOS OLHOS TRISTES 1   Menina dos olhos tristes O que tanto a faz chorar? O soldadinho não volta Do outro lado do mar.   Vamos senhor pensativo Olhe o cachimbo a apagar O soldadinho não volta Do outro lado do mar.   Senhora de olhos cansados Porque a fatiga o tear? O soldadinho não volta Do outro lado do mar.   Anda bem triste um amigo Uma carta o fez chorar O soldadinho não volta Do outro lado do mar.   A lua que é viajante É que nos pode informar O soldadinho já volta Do outro lado do mar.   O soldadinho já volta Está mesmo quase a chegar Vem numa caixa de pinho Desta vez o soldadinho Nunca mais se faz ao mar.     CANTAR ALENTEJANO 2   Chamava-se Catarina O Alentejo a viu nascer Serranas viram-na em vida Baleizão a viu morrer   Ceifeiras na manhã fria Flores na campa lhe vão pôr Ficou vermelha a campina Do sangue que ent...