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“Rock do cachorro morto”, Barão Vermelho e Machado de Assis

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Por Wagner Silva Gomes Francis Bacon. Man with Dog, 1953   Lembro-me que certo dia, Na rua, ao sol de um verão, Envenenado morria           Um pobre cão   Arfava, espumava e ria, De um riso espúrio e bufão, Ventre e pernas sacudia           Na convulsão   Nenhum, nenhum curioso Passava sem se deter,           Silencioso, Junto ao cão que ia morrer Quem sabe é delicioso? Ver padecer Como se lhe desse gozo   Ver padecer Como se lhe desse gozo      Ver padecer…     George Israel e Guto Goffi, em parceria póstuma com Machado de Assis, cobriram de eletricidade e percussividade o poema “Suave Mari Magno” (1880) que, na estética roqueira, recebeu o título de “Rock do cachorro morto” (do disco Barão ao vivo , 1989). Os compositores, como que seguindo os preceitos de Ezra Pound em ABC da Literatura (1934), encheram de energia as imagens e as sonoridades dos v...

Faça-se você mesmo, de Enzo Maqueira

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Por Pedro Fernandes Enzo Maqueira. Foto: Pablo Montero   Muitos são os motivos que obrigam alguém a estabelecer em ultimato itinerários que não se anteviam; nem sempre os motivos da fuga são antevistos pelo fugitivo: a fúria da natureza, o desmanche de uma condição mínima de sobrevivência em comunidades sequestradas por governos espúrios, de um grave erro capaz de levá-lo à condena no seu grupo social, por uma oportunidade irrecusável — sim, ainda existem casos fora do circuito das negatividades —, enfim, as possibilidades são muitas. Mas, e quando a fuga é deliberada, do que fogem? Da insatisfação com o lugar de morada, de um amor problemático, em busca de outro modo de vida? Nesse caso, a justificativa parece não importar. Mesmo se bem ajambrada, no final da reta, é a busca por si, o que nem sempre aparece assim visível a olho nu por quem foge, principalmente se este não está disponível ou não encontra no outro a dimensão capaz de favorecer qualquer coisa que poderíamos designar ...

Álbum de testemunhos

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Por Sandro Ornellas   Duas palavras se destacam para mim depois da leitura de Pequeno álbum de silêncios , livro de Monica Menezes e Sarah Fernandes: silêncio e segredo. Ambas estão em locais-chave: no título e na epígrafe de Cecília Meireles: “Dizer com claridade o que existe em segredo”. Sem serem sinônimas, silêncio e segredo se somam para dizer o que é de certo modo literatura e, dentro da literatura, poesia. Se a poesia pode ser entendida como uma margem extrema da literatura, margem que se confunde e mistura com a música e as artes visuais, faz todo o sentido os poemas virem no livro lado a lado em importância e diálogo com fotografias. Nem as fotos ilustram os poemas, nem os poemas são legendas para as fotos. A montagem de ambos ao longo do livro cria atmosferas que interrompem qualquer tentativa de unidade discursiva ou narrativa que se queira lhes dar. E ambos, poema e fotografia, são portadores dos silêncios e segredos do que chamamos poesia, essa interrupção da fala, co...

Quando morrer é um gênero literário

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Por Rafael Ruiz Pleguezuelos Pierre-Antoine-Augustin Vafflard. A morte de Molière.   Nesse gênero de fantasia para adolescentes (e não tão adolescentes) que é Quem é você, Alasca? , o protagonista parece ter apenas um incentivo em sua vida: memorizar as últimas palavras de grandes nomes da história, especialmente da política. Através da série circulam as últimas mensagens de Roosevelt, Jefferson e outras grandes figuras da memória estadunidense.   A lembrança do livro de John Green me trouxe um encontro há mais de vinte anos em que um daqueles grandes escritores no papel mas difíceis de lidar (quase todos eles, por que vamos nos enganar) me confessou ser curioso irreprimível por saber as últimas palavras dos escritores que admirava. Como ele também era um indivíduo oprimido por seus vícios — que, temo, continua até hoje — suponho que em cada exemplo que encontrava julgava formular sua própria mensagem anterior ao último momento. Quero supor que seu ego lhe dizia que, se como e...

Os manuscritos inacabados por trás do alegado desprezo de Edward Said pela ficção

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Por Donna Ferguson Edward Said. Foto: Michael Birt. Edward Said era claro e firme: a obra de um crítico, argumentava, é mais importante que a de poetas e romancistas. São os intelectuais públicos, acreditava ele, os escritores mais capazes de desafiar o poder e mudar o mundo. No entanto, de acordo com uma nova biografia do altamente respeitado estudioso e crítico literário palestino, Said secretamente escreveu tanto poesia como ficção – sem jamais mencionar o fato a seus amigos. Said, que morreu em 2003, deixou para trás dois romances incompletos e abandonados, um conto rejeitado e ao menos 20 poemas, como pioneiramente revela a biografia de Timothy Brennan. A Brennan – um ex-aluno de Said que é agora professor de literatura comparada na Universidade de Minnesota – foi dado um acesso sem precedentes aos manuscritos inéditos, cortesia da família de Said. A biografia, Places of Mind: a Life of Edward Said , publicada pela Bloomsbury, lança nova luz sobre como, após toda uma vida ensinand...

Seis poemas-canções de Paul Simon

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Por Pedro Belo Clara (Selecção e versões)¹   Paul Simon. Foto: Peter Simon.     O SOM DO SILÊNCIO ( Wednesday Morning , 3 A.M. — 1964)   Saudações, trevas, velhas amigas Venho de novo falar convosco Pois uma visão, insinuando-se docemente Deixou em mim, enquanto dormia, as suas sementes E a imagem que na minha mente foi plantada Ainda permanece No seio do som do silêncio   Em sonhos inquietos caminhava sozinho Por estreitas ruas calcetadas Debaixo do halo dum candeeiro Levantava a gola do casaco contra o frio e a humidade Quando os meus olhos foram apunhalados pelo clarão dum néon Que dividiu a noite E tocou o som do silêncio   E na luz nua vi Dez mil pessoas, talvez mais Pessoas conversando sem falar Pessoas ouvindo sem escutar Pessoas compondo canções que voz alguma cantará E ninguém se atrevia A perturbar o som do silêncio   Tolos , disse, Não sabem Que o silêncio prolifera como um cancro Escutem as minhas palavras para que vos possa ensinar Receb...