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Flaubert, a ciência certa

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Por José Manuel Sánchez Ron Bouvard e Pécuchet, de Gustave Flaubert. Ilustração: Gavarni. Ninguém é uma ilha isolada do mundo em que vive. Advertido ou inadvertidamente, o mundo, suas realizações, esperanças, medos ou dramas entram em nosso ser pelos poros do pensamento. As notícias editoriais são um bom e contínuo barômetro disso. Atualmente, reagindo ou testemunhando calamidades ou ameaças — mudanças climáticas, terrorismo, confrontos político-militares possíveis ou reais, erupções vulcânicas... — não é surpreendente encontrar títulos como Peligros cósmicos. El incierto futuro de la humanidad (Perigos Cósmicos. O futuro incerto da humanidade, tradução livre), do astrofísico e divulgador científico David Barrado Navascués, ou que o último romance de Ken Follett, Never , trate de uma crise global que enfrenta a China e os Estados Unidos; “uma história intensa e acelerada — tal como anunciada na contracapa — que transporta os leitores à beira do abismo”.   A “presença do contemporân...

Monterroso em movimento

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Por Enrique Vila-Matas Augusto Monterroso. Foto: Basso Cannarsa / Alamy (Reprodução)   1. Naquela época eu não tinha ideia que o escritor de textos breves realmente não quer nada mais no mundo do que escrever incessantemente textos longos em que a imaginação não tenha que trabalhar, em que nos acontecimentos, coisas, animais e homens se cruzem, se busquem ou fujam, vivam, convivam, amem-se ou derramem livremente seu sangue sem sujeição ao ponto-e-vírgula, ao ponto.   E acreditava nisso a tal ponto que achava que o certo a fazer era ser breve e não cansar, narrar histórias rápidas de finais fulminantes, tão fechados quanto definitivos, e que não prolongassem o às vezes fingido olhar de expectativa do companheiro de mesa ou interlocutor, ou seja, ser muito educadamente sintético e diáfano com quem, ao meu lado, fingia escutar, ou de fato me escutava, embora nesse caso sempre me esperasse para ser rápido na minha apresentação.   — Tive um sonho. Estava voltando a conhe...

Inacabamento e expansividade: Contos Inacabados, de J.R.R. Tolkien

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Por Guilherme Mazzafera   J.R.R. Tolkien. Foto: Coleção Life Images. Que Tolkien é um dos mais produtivos autores-defunto (para inverter a lógica do nosso Brás Cubas) da história não há o que discutir. Porém, quatro décadas atrás, pouco suspeitavam seus leitores da veracidade e abrangência de tal asserção. Afinal, a leitura de O Hobbit (1937) e O Senhor dos Anéis (1954-55) lhes dera poderosos vislumbres de um vasto arcabouço subjacente que, talvez pensassem alguns deles, não poderia ser meramente hábil sugestão engastada literariamente. É certo que grande parte de seu efeito (e mesmo de seu tom) é derivado dessa capacidade sugestiva, decantada em um elã progressivamente elegíaco, mas era preciso certo gesto de fé para crer que a gênese de tal universo ficcional — ou Mundo Secundário, conforme prefere a poética tolkieniana — havia de estar registrada em algum lugar oculto, pacientemente aguardando publicação. Foi com imensa alegria, portanto, acompanhada de algum embevecimento, que...

Boletim Letras 360º #459

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    DO EDITOR   1. Caro leitor, falta pouco e divulgamos quais os três títulos da Pontoedita disponíveis para o sorteio no segundo bimestre do nosso clube de apoios. Aliás, dois deles, porque um aparece recomendado neste Boletim. Leia e já saberá.   2. Para 2022, nosso ano de debutante, pensamos uma série de coisinhas para os leitores fora do clube e que são especiais para nós tanto quanto. Falamos de alguns sorteios avulsos. Acompanhe o blog em todos os recantos da web . Enquanto isso, você pode se inscrever nas promoções aqui realizadas. Saiba como aqui .    3. Obrigado por sua companhia e pela disseminação do nosso trabalho. A seguir parte das notícias que circularam em nossa página no Facebook e outras mostradas primeiramente por aqui. Cecília Meireles. Publica-se livro com inéditos da poeta.   LANÇAMENTOS   Um catálogo a altura da exposição dedicada a Clarice Lispector .   O Instituto Moreira Salles publica Constelação Clarice . Organi...

Futebol de literatura periférica

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Por Wagner Silva Gomes Ilustração: Giovanna Jarandilha.    Pasolini, escritor, poeta e cineasta italiano, escreveu em 1971 o ensaio intitulado “O futebol”. Nele o escritor analisa as diferenças entre o que ele chama de futebol de prosa (cerebral, esquemático, técnico) e futebol de poesia (imprevisível, gingado, inventivo). Ele diz que o primeiro tipo de futebol tem mais a ver com a realização europeia e o segundo com a realização latino-americana, mais especificamente a brasileira. Refiro-me a Pasolini pra trazer a minha constatação de que há um futebol de literatura periférica (esquemático e imprevisível; cerebral e gingado; técnico e inventivo) que, para além dos gêneros literários narrativo e lírico, é realizado por uma literatura em que as palavras e frases são pensadas, enchidas, energizadas, por construtos estéticos-sociais (escola de samba, dança de quadrilha, futebol, capoeira, música, principalmente o rap, a cultura hip-hop em geral etc.) realizados e exercitados fort...