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Literatura através das águas: uma análise crítica da obra O som do rugido da onça

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Por Lucas Pinheiro Micheliny Verunschk. Foto: Renato Parada Desde suas características técnicas até sua incrível escolha estilística, Micheliny Verunschk, graduada em História pela AESA-PE, Mestre em Literatura e Crítica Literária e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, guia-nos entre a história de dois jovens indígenas brasileiros raptados por Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von Spix no começo do século XIX.  São inúmeras as similaridades da obra de Micheliny em relação aos romances do século XX, especialmente sua relação próxima a Guimarães Rosa, já que há em ambos uma mistura de hábitos populares a uma narração erudita, fatores que oferecem ao leitor uma perspectiva de caráter antropológico justaposta ao que é fruto das escolhas cintilantes e nada superficiais que só existem enquanto mediadas pela imaginação febril e lírica dos escritores.  Todavia, ainda permeada de enormes singularidades, a obra traz uma trama por vezes bem interligada, de es...

Um chá bem forte e três xícaras, de Lygia Fagundes Telles

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Por André Cupone Gatti e Guilherme de Almeida Gesso Antes do baile verde é talvez o livro de contos mais conhecido e aplaudido de Lygia Fagundes Telles, e desde o seu surgimento em 1970 vem se firmando como um dos pontos altos da contística em língua portuguesa da segunda metade do século XX. Verdade seja dita, porém, há irregularidades, no livro, de um conto para outro, e apesar da escrita ser sempre limpa e bem urdida, nem sempre a narração, às vezes explícita demais, alcança a excelência literária; por outro lado, quando Lygia constrói tramas laterais, discretas e quase nulas, e impregna algumas poucas palavras aparentemente despretensiosas de significações decisivas, alcança-se a primazia no gênero. Exemplos de contos dessa espécie, e que são obras-primas não só do século XX, mas da literatura em língua portuguesa desde sempre: “O menino”, “Meia-noite em ponto em Xangai”, o machadiano “Antes do baile verde”, e o discretíssimo, enganador e de trama quase inexistente “Um chá bem fo...

Boletim Letras 360º #473

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    DO EDITOR   1. Caro leitor, nos próximos dias de março de 2022, o Letras alcançará a marca de 4 milhões de visitas. A alegria por esse número é tamanha que chegamos a prevê-lo erroneamente no nosso Twitter em meados de fevereiro. Mas, agora sim.  2. Todo número é opaco porque não sabemos quem foi e que se fez por aqui o leitor nessas passagens. Mas, de qualquer forma, para um projeto conduzido com a garra da boa coragem e o amor a um objeto cada vez mais colocado à distância dos leitores neste país de rapinagem e inflação, 4 milhões de visitas tem um grandioso significado.   3. Bom, ao visitante que lê este Boletim, fica avisado sobre o próximo sorteio entre os apoiadores do blog. Uma ideia nascida de um de vocês e que tem ajudado a levantar os custos anuais deste projeto com domínio e hospedagem na web . Saiba tudo aqui , incluindo outras formas de ajudar. E não esqueça: na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste boletim, você tem d...

Desconservar o masculino (parte 2): Chico Buarque e a estética do cancelamento em “Com açúcar, com afeto”

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Por Marcelo Moraes Caetano ©  Lucienne Day   Recentemente, o cantor e compositor Chico Buarque decidiu que não mais cantaria sua canção “Com açúcar, com afeto”. Tratou-se de uma importante postura, por ter vindo de um dos maiores artistas e intelectuais brasileiros. Os lados que essa atitude trouxe à discussão, suas causas e consequências, parecem interessantíssimos.   Minha admiração por Chico Buarque é imensa. Tanto que dediquei, recentemente, em 23 de novembro de 2021, uma coluna aqui no Letras à análise de uma de suas canções (“Todo o sentimento”, em coautoria com Cristóvão Bastos). Aproveitei o material literário para escrever a coluna que intitulei “Todo (o) sentimento em todo (o) tempo: um pequeno itinerário para uma breve crítica poética” (veja o final do texto).   Um dos meus campos de interesse atualmente é o conservadorismo à brasileira (plano do conteúdo) e suas múltiplas manifestações acadêmicas, midiáticas, artísticas, culturais, discursivas (plano da ...

Marrom e amarelo, de Paulo Scott

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Por Pedro Fernandes Paulo Scott. Foto: Renato Parada.   Depois de alguns tímidos esforços institucionais ou estaduais, o Brasil passa a contar com uma lei de cotas a partir de 2012. Nos moldes como foi pensada e como tem sido executada, apesar dos números positivos demonstrados, a questão nunca deixou de ser polêmica e marcada por enfrentamentos feitos com os mais variados argumentos de setores diversos da sociedade. Sem entrar no mérito da execução legal ou nas deficiências do sistema, importa sublinhar que a complexidade da coisa é em parte produto de um pequeno nervo das nossas hipocrisias: este que a partir do conceito de miscigenação passou a tratar este país como mestiço, no sentido de franca, harmoniosa e livre convivência racial.   É bem no interior desse debate — motivado pelas tentativas de aperfeiçoamento desses suplementos jurídicos e estatais — que se localiza Marrom e amarelo , de Paulo Scott. Mas isso é o raso de um livro que, decidido a se aproximar do que cham...

Vidas secas: o mais árido movie

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Por Heto Sazá Vidas secas (1963) faz questão de deixar bem claro, logo no primeiro plano, com um letreiro em tela: o filme trata-se de uma nota de esclarecimento sobre a realidade sertaneja e uma chamada pública à luta. O filme, por isso, começa e termina no mesmo fatídico lugar: na seca, na penúria, na miséria; começa e termina ciclicamente, tal qual a natureza que ele desnuda: num grito, alarmante e desconcertante. Melhor preparar o estômago, pois o que virá não será fácil. O filme a seguir não é daqueles que nos alisa a cabeça, pelo contrário, parece mais interessado em nos socar a barriga. A primeira fala de Sinhá Vitoria é reveladora, diz muito sobre uma gente que mal fala e, se fala, é feito bicho, num grunhido.  Ela, exausta e esfomeada pela longa viagem, mata o papagaio de estima da família na mão e se justifica dizendo “também, (ele) não falava, não servia pra nada”. Mas, mais reveladora ainda é a sua fala final, pois agora, no desfecho de sua jornada, ela vê a si mesma e...