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A arte agonizante do ensino na sala de aula digital

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Por Tim Parks É possível perder uma pedra fundamental de uma cultura sem identificá-la como tal? Este ano será meu último lecionando na universidade; decidi jogar a toalha três anos antes da idade de aposentadoria. Há um certo número de razões por trás dessa decisão, mas a alteração das circunstâncias na sala de aula é certamente uma delas. Mesmo em nível de pós-graduação, está se tornando cada vez mais difícil sentir que se tem a atenção dos alunos ou que algo de realmente útil acontece durante as aulas.   É claro, professores tem reportado perda de controle na sala de aula por décadas. No início da década de 1970, lembro-me de uma professora de colegial, trabalhando em uma área pobre de Boston, me dizer que ela poderia simplesmente ligar o rádio o mais alto possível e passar suas aulas ouvindo música. Amigos em Milão, hoje, lecionando nas chamadas scuole professionali , relatam experiências similares: a impossibilidade quase completa de se fazer ouvir, a necessidade de lançar mão...

La carretera del tiempo — uma leitura da obra de Juan Rulfo por Cristina Rivera Garza*

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  Por Felipe de Moraes     [...] Al fin me encuentro con mi destino sudamericano.   — De Jorge Luis Borges, em “Poema conjetural”     “—¿Qué país es éste, Agripina?”   — De Juan Rulfo, em “Luvina” Ilustração: Santiago Solís   Paul Valéry, em suas Lições de Poética ministradas no Collège de France no ano de 1937, observa que é impossível mensurar as forças envolvidas no ato da escrita (2018, p.11 e ss); isso porque a obra literária não é apenas um reflexo da interioridade do seu autor, vista como um produto exclusivo de suas faculdades subjetivas e racionais, ao contrário, o romance, o conto, o poema, o drama só ganham vida no contato com o mundo externo, ou seja, com os seus receptores e na sua circulação histórica e cultural. O texto literário, portanto, pode e deve ser compreendido como uma forma que abriga tensões constantes entre os elementos contraditórios que o constituem: tradição e modernidade, civilização e barbárie, utopia e conservado...

Alain Resnais: você ainda não viu nada

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Por Álvaro del Amo Alain Resnais no set de filmagens de Hiroshima, mon amour . Foto: Emmanuelle Riva.   “Você não viu nada em Hiroshima, nada”, diz o amante japonês à atriz francesa que foi filmar um filme pacifista. “Eu vi tudo em Hiroshima, vi o museu, o hospital, os jornais, as fotografias, a cidade devastada, vi tudo em Hiroshima, tudo”, ela responde. “Nada, você não viu nada em Hiroshima”, ele insiste.   O primeiro filme de Alain Resnais ( Hiroshima, mon amour , 1959) anuncia e dialoga com um dos seus últimos ( Vous n'avez encore rien vu , 2013). Uma advertência que, em sua ambiguidade muito genérica, proporciona uma possível chave para a obra desse cineasta tão peculiar. Anexado à Nouvelle Vague francesa, mais por coincidência em sua data de início, 1959, o ano de Acossado , de Jean-Luc Godard, do que por qualquer outra afinidade possível, esse cinéfilo que sempre fugiu da ênfase da autoria nunca fora um narrador. Ele se nutriu por textos literários que transformou em f...

A síndrome Paul Auster

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Por Malcolm Otero Barral Paul Auster Foto: Andrews Liechtenstein   Se entendermos a ficção como uma convenção entre o criador e o leitor ou espectador, a verossimilhança não é, em si, um valor. Enquanto existe uma espécie de acordo tácito entre ambos, o grau de semelhança com a realidade é irrelevante se o destinatário aceita o engano, se ele se deixa levar. É, portanto, tolerável, deste ponto de vista, que Paul Auster faça com que o menino protagonista de seu romance Mr. Vertigo tenha a capacidade de voar. No entanto, há uma característica que os seus críticos sublinham como meramente definidora e que é, ao meu ver, o ponto fraco de quase toda a sua obra e um vício que se revela contagioso: o abuso do acaso. Não há nada mais complicado do que juntar acontecimentos casuais. Essa concatenação de eventos aleatórios supõe quebrar esse contrato implícito com o leitor e negligenciar a mínima decência narrativa.   Ele mesmo se defende dessa acusação no Dossiê de Paul Auster  (...

Moby Dick e as sereias

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Por Jacinto Antón Ilustração para  Moby Dick .  Rockwell Kent.   Costumo voltar ao mar e a Moby Dick . No romance de Herman Melville, a tragédia do navio melancólico, você sempre encontra emoção e um raro consolo (ainda que seja o de não pertencer à tripulação do Pequod), e a cada leitura descubro coisas novas. Não sei o que me levou esses dias a embarcar novamente, mochila e arpão no ombro: uma vaga nostalgia, uma semana isolado pela Covid (felizmente não na pousada El Chorro em New Bedford com um canibal tatuado do outro lado da cama), tendo visto com meus próprios olhos em um estaleiro de Ferrol o triste casco devastado de La Perla Negra, o veleiro naufragado em Chipiona; ou a imagem na televisão da baleia pulando na costa de Garraf... Também tendo conseguido um maravilhoso livro pop-up , o que costumávamos chamar de recortado ou desdobrável, sobre Moby Dick , com “engenharia de papel” de Gérard Lo Monaco e ilustrações em linogravura de Joelle Jolivet (Chronicle Books...

Boletim Letras 360º #487

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DO EDITOR   1. Saudações, caro leitor! Abro esta edição do boletim, para informar que ficará disponível um exemplar da edição especial do Ensaio sobre a cegueira , de José Saramago (Companhia das Letras, 2022) para sorteio entre os apoiadores do blog. Saiba mais sobre o livro aqui .   2. É possível ajudar ao Letras com valores a partir de R$10 através do PIX blogletras@yahoo.com.br . Mas essa é apenas uma das formas. Você pode saber mais sobre por aqui . E, cabe não esquecer que na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste boletim, você tem desconto, também ajuda a manter o Letras sem pagar nada mais por isso .   3. A todos que acompanham o trabalho do Letras , reitero os sinceros agradecimentos. Boas leituras e um fim de semana de descanso. Virginia Woolf. Foto: National Portrait Gallery.   LANÇAMENTOS   Dois livros para marcar a edição brasileira do Dalloway Day’22, iniciativa importada pela Editora Nós .   1. Muito à semelhança d...