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Literatura e ativismo: as novas gerações

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Por Gisela Kozak Rovero Jacob Lawrence.   A poeta Amanda Gorman recitou seu poema “The Hill We Climb” no ato oficial do início da presidência de Joe Biden, apresentação que internacionalizou seu nome. Em várias entrevistas, Gorman insistiu no caráter não apenas político, mas abertamente ativista de sua escrita em favor da identidade afro-americana; confessa que no passado acreditava que a poesia era assunto para velhos e brancos, uma afirmação curiosa porque a língua inglesa produziu poetas extraordinárias e durante a curta vida dessa jovem uma enorme atenção foi dada às escritoras. Pouco importa: a iconoclastia literária não cessa.   Identificando-se como uma mulher negra estadunidense de origem modesta que se rebela contra os seus antigos, Gorman, em vez de se separar do passado, junta-se a ele inextricavelmente. Com sua firme defesa da identidade afro-americana e sua boutade em relação à branquitude masculina idosa, esta escritora participa dos ritos de passagem que marcam ...

Dentes, de Domenico Starnone

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Por Sérgio Linard Domenico Starnone. Foto: Leonardo Cendamo .   Ao lado da misteriosa Elena Ferrante, Domenico Starnone é um nome da literatura italiana contemporânea que merece nossa atenção. Não é, porém, somente a nacionalidade que aproxima estes escritores, pois ao passo que aquela parece ter como foco de sua obra a exploração das figuras desempenhadas pelas mulheres na sociedade, esse — em um simétrico contraponto — foca nas figuras masculinas, convidadas a encararem seus próprios erros para que percebam o quão frágeis e fingidas são as bases que sustentam a própria ideia de masculinidade. Não seria de grande espanto a notícia de que estes escritores mantêm contato entre si. Mas tais biografismos não são nosso foco; voltemos.   Starnone, nas obras por aqui publicadas, parece fundar seus personagens em uma risível situação de constrangimento constante que rega as páginas com o que popularmente chamamos de vergonha alheia e/ou de riso melancólico, sentimentos gerados exata...

Cervantes ou da sabedoria¹

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Por Ramón Xirau ² Dom Quixote. Ilustração de Júlio Pomar.   Quando, poucos dias antes de sua morte, Cervantes dedica Los trabajos de Persiles y Sigismunda a don Pedro Fernández de Castro, escreve: “Ontem me deram a Extrema-unção, e hoje escrevo esta. O tempo é curto, a ânsia cresce, as esperanças minguam, e com tudo isso, levo a vida a partir do desejo que tenho de viver, e [não] gostaria de pôr-lhe fim até beijar os pés de vossa Excelência [...]. Mas se está decretado que tenho de perdê-la, cumpra-se a vontade dos céus, e ao menos saiba vossa Excelência deste meu desejo.” No prólogo ao Persiles , Cervantes conta, com humor melancólico e anuência resignada, como ia cavalgando lentamente em seu rocim “passolargo”. Encontra-se com um estudante que, ao reconhecê-lo, enche-o de elogios. Responde Cervantes: “Este é um erro que cometeram muitos aficionados ignorantes. Eu, senhor, sou Cervantes, mas não o júbilo das musas, nem nenhuma das demais patetices que disseste. Vossa mercê recobr...

Boletim Letras 360º #509

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    DO EDITOR   1. Caro leitor, abrimos as inscrições para o clube de apoios ao Letras no mês de dezembro. Disponibilizamos quatro livros e queremos sortear quatro leitores. Para saber como se inscrever para os sorteios, visite aqui .   2. Reiteramos, por fim, que na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste Boletim garante a você desconto e ajuda ao blog sem pagar nada mais por isso .   3. Um abraço e bom final de semana com boas leituras! Albert Camus. Foto: Keystone-France.   LANÇAMENTOS Livro investiga A prosa do Transiberiano e a pequena Jehanne de France , de Blaise Cendrars e Sonia Delaunay .   Um livro que ao ser desdobrado revela uma longa página com poesia e campos coloridos. É essa a proposta do trabalho de Blaise Cedrars e Sonia Delaunay em A prosa do Transiberiano e a pequena Jehanne da França (La prose du Transsibérien et de la Petite Jehanne de France). Lançado em 1913, é considerado um livro-objeto emblemá...

Naqueles dias havia sempre amigas em casa

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Por Pilar del Río José Saramago à janela de sua casa em Lanzarote.   Não combinaram, mas iam chegando a Lanzarote amigas que nunca tinham passado pela ilha, ou que havia tempo não apareciam, ou que, sem grandes explicações, encontravam uma desculpa para estar ali e dividir com José Saramago os momentos que o trabalho ou o avanço da doença permitiam.   Chegaram da Argentina ou do México, de Portugal, da Alemanha, da Itália, da Espanha. Eram escritoras como Ángeles Mastretta, uma das últimas a passar pel’ A Casa , ou Nicole Witt, sua agente literária, Annie Morvan, sua editora francesa, ou Pilar Reys, sua última editora em espanhol; ou Patricia Kolesnicov, sempre tão próxima apesar de viver em Buenos Aires, ou Lola Cintado, Mamen Otero ou Marta Carrasco, amigas de toda a vida. Também de Portugal chegaram Carmélia Âmbar, Antonietta Tessaro ou Teresa Beleza, que irromperam em grupo, ruidosas quase todas, imprescindíveis na hora de ouvir um concerto, tomar o café no jardim ou simpl...

José Saramago e a trajetória do romance

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Por Pedro Fernandes José Saramago em seu escritório Desde cedo José Saramago foi um homem feito de palavras. Mas isso, de alguma maneira, todos nós somos. Quando pensamos o mundo como uma matéria derivada da relação que com ele mantemos mediada pela consciência, sabemos que nada existe, nem a própria consciência, sem a palavra. Ainda assim, a afirmativa se reveste de uma dimensão particular quando seu referente é um escritor. É que nesse caso a palavra é também seu ofício e especificamente em Saramago a escrita não é somente seu produto, mas via de interrogação sobre o mundo. Evidentemente que não foi ele inaugurador dessa singularidade — herdada, claro está, do modelo do intelectual engajado do qual Jean-Paul Sartre foi seu conceituador e um típico representante e das motivações de corte social-marxista —, mas é quem a resgata numa ocasião quando constatamos o assoreamento do lugar social do intelectual e ainda quando os valores da escrita literária se tornam ora presos a um fechamen...