Postagens

Todas as Carmen

Imagem
Por Ernesto Diezmartínez Melissa Barrera e Paul Mescal, em Carmen .   Quanto é possível descarmenzar Carmen? Ao longo da sua história cinematográfica — mais de oitenta versões, entre curtas e longas-metragens, filmes de animação, musicais, telefilmes e óperas filmadas —, “la Carmencita” foi transferida para diferentes tempos e espaços. Foi a cigana original que aparece no romance publicado por Prosper Mérimée em 1845, mas também a ingovernável jovenzinha afro-americana que enlouquece um sério soldado em Carmen Jones (Preminger, 1954), a indomável bailarina de flamenco que interpreta Carmen e que se (con)funde com o personagem na soberba versão de Carlos Saura de 1983, a jovem criminosa francesa que seduz um policial até transformá-lo em delinquente Prénom Carmen (1983) de Godard, a robusta suburbana sul-africana no musical U-Carmen-eKhayelitsha (Dornford-May, 2005) e, agora, uma mexicana clandestina nos Estados Unidos (Melissa Barrera) em Carmen (França-Austrália, 2022), audaz ...

O pulso do tempo: “Meio século com Borges”, de Mario Vargas Llosa

Imagem
Por Patricia Córdova Jorge Luis Borges, Mario Vargas Llosa e Alicia Jurado. Buenos Aires, 1981.   Tentar entender a vida e a obra de um autor não é menos complexo do que tentar elucidar a história e o temperamento de uma nação. E é precisamente na procura das lacunas dessa complexidade que reside o valor de quem se propõe a interpretar um autor, uma obra, uma cultura. A quebra da complexidade é a única forma de garantir o verdadeiro respeito pela diversidade: aqui e ali, o eu e o outro são compreendidos, os pontos de vista são ampliados. A complexidade interpretativa nos aproxima da democracia. Seu oposto, a simplicidade interpretativa, garante o dogma, a polarização e, sobretudo, a desqualificação do que não nos é semelhante. Na literatura, na filosofia e na história é onde a interpretação crítica e criativa ocorre com maior força, pois sua existência é a única garantia para o progresso de uma sociedade. Livros e autores não bastam, eles devem ser interpretados.   Meio sécul...

Witold Gombrowicz

Imagem
Por Enrique Vila-Matas Witold Gombrowicz. Tandil, 1958.   Antes de tudo, devo esclarecer a maneira ridícula como surgiu meu fascínio pela literatura de Gombrowicz. Surgiu muito antes de ler sua obra. Nasceu exatamente do contato com uma fotografia que acompanhava a entrevista que lhe fizeram no primeiro número da revista espanhola Quimera . Gombrowicz posava com um boina, muito altivo no alto do que parecia ser uma carruagem, em Tandil, Argentina. Ele tinha o que eu entendia que deveria ter, um rosto arrogante de uma pessoa inteligente. Ainda não sabia que ele havia escrito: “Quanto mais inteligente se é, mais tolo.”   Eu ainda não sabia disso ou de muitas outras coisas, mas me pareceu intuir que na entrevista Gombrowicz dizia coisas geniais ou complicadas. As frases complicadas acabaram parecendo-me ainda melhores do que as geniais. Quero ser parecido com ele, pensei imediatamente. Não queria ser como Juan Benet ou Sánchez Ferlosio. Queria ser um escritor não-espanhol e, se ...

Boletim Letras 360º #547

Imagem
Vicente Aleixandre. Foto: Gianni Ferrari LANÇAMENTOS   Pela primeira vez no Brasil um livro do Nobel de Literatura Vicente Aleixandre, poeta espanhol que marcou o século XX .   Em A destruição ou o amor , Aleixandre atingiu a maturidade total do seu estilo poético, com uma escrita complexa e original marcada pelo surrealismo. Publicado na Espanha em 1935, o livro recebeu o Prêmio Nacional de Poesia e é o principal título da primeira fase do autor, que é um dos expoentes da chamada Geração de 27 e ganhador do Nobel de Literatura em 1977. A destruição ou o amor nasceu aparentando uma insatisfação de Aleixandre com certas limitações do estilo surrealista — ele simplesmente assimila o estilo em uma visão expandida que alguns chamaram de neorromântica, pois em seu panteísmo místico o poeta abraça o próprio mundo em amor que consome. O autor move-se com grandiosidade nesse cosmos, sem Deus e sem homem civilizado, cumprindo o seu destino trágico através do amor como destruição. O l...

De Afrodite a Vênus: reimaginando o mito da divindade feminina

Imagem
Por Giovanni Villavicencio   Ó mãe dos filhos de Enéas; volúpia de homens e deuses, [...] a ti quero de sócia na escrita desses versos, que sobre a natureza das coisas tento compor   — Lucrécio* Vênus deitada numa concha. Afresco de Pompeia.   Ao nos aprofundarmos na literatura greco-romana, a primeira coisa que descobrimos é a importância dada às deusas no interior dessas sociedades. Essa cosmovisão foi posteriormente rejeitada pelo cristianismo, pois embora a figura de uma divindade feminina tenha sido preservada, ela perdeu sua condição de deusa para ocupar um lugar secundário como a mãe de Cristo. Hoje gostaria de refletir sobre as continuidades e rupturas do mito da divindade feminina na antiguidade clássica, abordando o caso da deusa grega Afrodite e sua equivalente romana, Vênus, através de uma série de “reimaginações” de textos clássicos. Embora ambas as tradições vissem essa divindade como a deusa do amor, cada uma deu a ela traços específicos que se escondem s...