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A bíblia, Péter Nádas

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Por Pedro Fernandes Péter Nádas. Foto: Fredrik Sandberg   Devido sua riqueza narrativa e simbólica, a literatura desde sempre recorreu à Bíblia como matéria criativa. O primeiro romance de Péter Nádas é um exemplo disso. O livro dos livros é recuperado no uso intertextual e funciona também como um elemento nuclear e mesmo essencial para as significações e o funcionamento da narração, esta que, à semelhança dos textos bíblicos tratados como sagrados pelas religiões que os utilizam, é apenas superficialmente simples mas complexa em sua profundidade.   Articulado pela memória do narrador adulto que se desdobra sob perspectiva infantil, o que se narra em A bíblia é apenas uma curta passagem de tempo quando os dias numa casa de altos funcionários do governo comunista do tempo de Mátyás Rakosi são marcados pela chegada de Szidike, uma jovem de dezessete anos contratada para cuidar dos afazeres domésticos. Esse núcleo familiar é formado por Gyuri, quem conta a história, os pais e os...

Anatomia de uma queda. A verdade nos tribunais

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Por Carlos Rodríguez Com refinada ironia, Anatomia de uma queda (2023) é o espectador observando uma bola cair escada abaixo dentro de uma casa. A abertura — que está ligada a uma curiosa melodia em loop que desencadeia a trama — ativa múltiplas funções. Por um lado, é um jantar que a diretora Justine Triet copiou de A troca (1980), filme de terror de Peter Medak. É também uma forma de relativizar um fato que resume as intenções do filme: a bola caiu ou apenas quicou? Tudo isso para contar a história de uma morte e resgatar a dinâmica — vedada ao público — de uma família. Como já sabemos, “todas as famílias felizes são semelhantes entre si, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, então Triet decompõe esta família com um zoom que parece um bisturi e, o que é mais intrigante e difuso, ensina questões sobre justiça e a busca da verdade como princípio moral. Com um cenário nevoado, certos planos e até mesmo o corte de cabelo de uma criança que recordam O Iluminado (1980), o f...

O dia dos prodígios, de Lídia Jorge

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Por Gabriella Kelmer Lídia Jorge. Foto: Jean-Luc Bertini   É o aceno involuntário de Carminha ao lavar as janelas de casa o ato que recepciona o leitor que toma às mãos O dia dos prodígios (1979), romance de estreia da escritora portuguesa Lídia Jorge. A narrativa, ao se iniciar com a pitoresca descrição da personagem, situando-a para lá do vidro, simboliza o isolamento em que vivem a jovem e sua mãe, apartadas dos outros habitantes do vilarejo por rejeição e anteparo próprio, devido ao escândalo eclesiástico que fora o nascimento da moça. A limpeza sugestiona a tentativa de dirimir as nódoas passadas; a transparência das janelas nega, ao olhar externo, a presença de mácula na vida íntima. O narrador, que alternadamente vê à distância a personagem e se entranha em sua subjetividade, apreende simultaneamente o gesto do corpo e seu desejo interrompido de liberdade. A saída às ruas é, à filha do padre, a manifestação da sentença perpétua a ela imposta.   O caráter insular da vi...

São nossos os pesadelos de Kafka

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Por José Domingo Argüelles Franz Kafka. Arte: Mathieu Laca.   É o primeiro centenário da sua morte e por isso 2024 também se converte no ano de Kafka. Kafka, essa palavra de cinco letras (três, na verdade, se subtrairmos as que se repetem), refere-se não apenas a uma obra e a um século, mas a toda uma literatura.   Nasceu em Praga, em 3 de julho de 1883; morreu de tuberculose em um sanatório em Kierling, área da pequena cidade austríaca de Klosterneuburg, perto de Viena, em 3 de junho de 1924. Tinha 40 anos. Faltava exatamente um mês para completar 41 anos. Praga era então uma das capitais do Império Austro-Húngaro e, embora muitas vezes se afirme que ele é um escritor tcheco, na realidade ele era um cidadão tcheco, mas um autor alemão, já que escreveu neste idioma. É um dos maiores nomes desta literatura no século XX, contemporâneo de Rainer Maria Rilke (1875-1926), Thomas Mann (1875-1955) e Hermann Hesse (1877-1962), entre outros notáveis, embora tenha sido um desconhecido,...

Boletim Letras 360º #572

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    DO EDITOR   Olá, leitores! O Letras procura bons leitores que escrevam sobre livros (ficção, poesia, teatro), filmes ou assuntos intrinsecamente ligados ao universo literário. Se você possui este perfil, pode se juntar a este projeto. A inscrição é simples:   - basta enviar através do e-mail blogletras@yahoo.com.br até o dia 16 de fevereiro de 2024, um resumo biográfico e três textos inéditos;   - para saber como organizar os seus textos e mesmo conhecer um pouco da linha editorial do Letras , é importante acessar e ler as informações disponíveis aqui ;   - se restar qualquer dúvida, pode procurar pela gente no e-mail referido ou na DM das nossas redes sociais: no Twitter, Facebook ou Instagram.   Sua inscrição é muito bem-vinda!     Ray Bradbury. Foto: Yousuf Karsh.   LANÇAMENTOS   Ray Bradbury expõe o lado sombrio da indústria do cinema .   Lançado pela primeira vez em 1990, Cemitério de lunáticos é o segundo volum...

Lolita é Nabokov

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Por Monika Zgustova Vladimir Nabokov e o tio Ruka , 1908. Arquivo: The Vladimir Nabokov Literary Foundation   Os pais de Vladimir Nabokov costumavam passar o verão em Vyra, numa mansão com um grande jardim nos arredores de São Petersburgo. Depois de um daqueles almoços tardios, longos e fartos, tão característicos do gosto dos russos abastados antes da revolução, os anfitriões e convidados saíram para tomar café no terraço. Vladimir, que tinha oito anos naquela primavera de 1907, ficou retido por seu tio Vasili Rukavishnikov, um diplomata, ou Ruka , como o chamavam seus colegas de trabalho nas embaixadas. Ruka , que em russo significa “mão”, foi o apelido que também se enraizou na família. Quando os comensais saíram para a esplanada, o tio sugeriu ao rapaz que ficassem os dois sozinhos na sala de jantar inundada pelo sol.   Sentou a criança em seu colo e acariciou-a gentilmente, sussurrando palavras brincalhonas e travessas em seu ouvido; o pequeno Vladimir sentiu-se env...