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Via Ápia: cinco visões de uma realidade

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  Por Vinícius de Silva e Souza Após o sucesso com O sol na cabeça , Geovani Martins foi ousado ao partir para o gênero romance e valendo-se de uma narrativa tão complexa: a vida de cinco jovens periféricos durante um específico e nada curto ou pacífico período de 2011 a 2013 —, antes, durante e depois da ocupação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em favelas do Rio de Janeiro.  Em Via Ápia  Acompanhamos os irmãos Washington e Wesley e os três amigos Biel, Douglas e Murilo enquanto sonham, se apaixonam, transam, brigam e fumam. Enquanto vivem. “A sensação era de que a vida não dava tempo para pensar nem escolher nada”, esclarece a narrativa, “é sempre um dia depois do outro pra ver no que vai dar.”   Por esses cinco jovens, Geovani Martins faz um retrato nada isento da vida na favela da Rocinha. A maconha é recorrente, talvez até demais, se fazendo presente em todos os curtos capítulos, agora, muito mais do que o acessório da erva, o que mais transparece por...

Menos que um, de Patrícia Melo

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Por Gabriella Kelmer Patrícia Melo. Foto: Marcelo Tabach   Os desafios de conceber um texto literário que dê vazão a questões sociais complexas, como a problemática da falta de moradia, da miséria, do racismo e da transfobia, apenas para elencar algumas temáticas tocadas pelo mais recente romance de Patrícia Melo, são bem conhecidos. De um lado, há o problema da possível objetificação de determinadas linguagens, o que se traduz pela intransponível distância entre narrador culto e personagens desvalidas, bem como pela fetichização do dialeto, da gíria e das regionalidades em um alvoroço pouco convincente de estereótipos; de outro, há a literatura panfletária, os clichês e as construções repisadas, que, se pouco acrescentam ao alcance social dos temas de que tratam, menos convincentes se mostram como matéria literária. Lançado em 2022 pela Leya, Menos que um , em suas mais de trezentas páginas, é bem-sucedido em não apenas evitar essas incorrências, mas também em elaborar um quadro p...

Boletim Letras 360º #576

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DO EDITOR   Olá, leitores! Na próxima semana, vocês começarão a conhecer os autores que publicarão no Letras a partir desse ano.   O resultado da seleção foi divulgado nos e-mails dos candidatos no último dia 29 de fevereiro.   Reitero por aqui, em nome do Letras , os agradecimentos aos que se inscreveram. E aos selecionados, mais uma vez, bem-vindos e parabéns! Karin Boye. Foto: Gunnar Lundh   LANÇAMENTOS   Nova edição e tradução de Kallocaína , uma distopia sobre a importância da conexão genuína entre seres humanos e tão importante quanto 1984 de George Orwell, Admirável mundo novo de Aldous Huxley e Nós de Ievguêni Zamiátin .   Leitura obrigatória para quem gosta de distopias, este clássico consagrou a autora sueca Karin Boye como um dos grandes nomes da ficção científica. Nesta atmosfera asfixiante, acompanhamos um cientista partidário de um Estado totalitário, que desenvolve uma droga que força quem a toma a revelar pensamentos e até vontades inc...

As consequências e o peso da virtude em Os Miseráveis

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Por Guilherme França Bartolomé Esteban Murillo. O retorno do filho pródigo. 1667. Escrever sobre os chamados “clássicos da literatura mundial” é uma tarefa grata e ingrata ao mesmo tempo. De um lado, o crítico pode consultar diversas fontes, debruçar-se sobre artigos, dissertações ou teses que versem sobre o livro ou mesmo conversar com os amigos a respeito de tal obra, pois é bem provável que já tenham realizado essa leitura. De outro, existe um nítido problema: quase tudo foi falado, em todos os lugares e em épocas distintas. Com isso, é inevitável que se questione a necessidade ou mesmo a pertinência de um novo texto acerca deste ou daquele clássico.   Seja como for, arrisco escrever algumas considerações sobre um aspecto específico da obra Os Miseráveis , de Victor Hugo. Sobre este romance, que figura entre os mais conhecidos ao redor do mundo, como era de se esperar, muita coisa já foi dita. E em quase todas as análises que leio a respeito da obra, percebo uma certa insi...

A sombra do gigante

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Por Jordi Canal Mario Vargas Llosa. Foto: Oscar del Pozo. A Académie Française elegeu Mario Vargas Llosa como novo integrante da instituição em novembro de 2021. O Prêmio Nobel de Literatura de 2010 ocuparia o assento número dezoito. Já imortalizado — nome dado aos eleitos a partir da reservada cerimônia de posse —, no dia 9 de fevereiro de 2023, teve lugar o ato de recepção, com a notável presença do antigo rei da Espanha Juan Carlos I, sob a cúpula da sede parisiense da Academia. Vargas Llosa apareceu com o obrigatório uniforme verde — na verdade, azul escuro ou preto, com bordados de ramos de oliveira verdes e dourados — e a espada simbólica, que no seu caso era obra do mestre espadachim de Toledo Antonio Arellano. O escritor hispano-peruano proferiu um notável discurso no qual, além de fazer os elogios obrigatórios ao seu antecessor na décima oitava cadeira, o filósofo Michel Serres, abordou a sua relação com a França, a literatura francesa — em primeiro lugar, obviamente, de Gusta...

A zona de interesse: Jonathan Glazer e sua magistral dissecação da banalidade do mal nazista

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Por Manu Yáñez   Numa passagem perturbadora do romance A zona de interesse , o escritor britânico Martin Amis usou a voz interior do comandante de um campo de concentração nazista para sintetizar a ideia da banalidade do mal. “Porque sou um homem normal com necessidades normais. Sou completamente normal.” Esta sinistra noção de normalidade, acompanhada de um profundo processo de alienação, de perda de perspectiva, é o que disseca o também britânico Jonathan Glazer no magistral The Zone of Interest , o seu primeiro filme desde o não menos memorável Under the Skin .   Naquele filme de ficção científica — onde Scarlett Johansson interpretava um alienígena que descobriu o significado da consciência humana —, Glazer inventava um ousado dispositivo cinematográfico que lhe permitia estudar o choque entre o inexplicável (a odisseia do alienígena) e o conhecido (os rituais humanos). Em cenas cheias de estranhamento, filmadas com oito pequenas câmeras digitais escondidas dentro de uma ...