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As ilhas e a literatura, um elo infinito

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Por Alfonso Aguirre Muñoz Antoine Watteau. Le Pèlerinage à l'île de Cythère.   “No princípio era o verbo”. Em torno do verbo, que é o início da consciência, sempre existiu o ambiente. Palavra e ambiente, entre a imaginação e a realidade, dialogam incessantemente, uma alimentando a outra. O princípio é origem no tempo e origem da natureza, da materialidade, do cosmos, da terra, da água. Tempo, espaço e sentido andam de mãos dadas.   As ilhas têm sido um território fértil para a inspiração. Representam mesmo um ambiente de segunda ordem: o sujeito rodeado de terra e ao redor de ambos o mar, só do mar. O centro se lança à periferia, oferecendo o distanciamento que permite a abstração. As ilhas são cenários que provocam reflexão sobre o sentido da vida, inspiram ilusões, desafiam aventureiros, iluminam propósitos e, por fim, alimentam a literatura. Além do divino, o verbo em seu contexto é a essência da chave literária e da filosofia.   Existem dois exemplos paradigmáticos d...

Monique Malcher e os monstros que habitam a noite em “Flor de gume”

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Por Henrique Ruy S. Santos Monique Malcher. Foto: Arquivo CBL. Monique Malcher, nascida em 1988 na cidade de Santarém, no estado do Pará, é escritora e artista plástica, com formação nas áreas de Jornalismo e Antropologia. É uma profícua autora de zines , gênero que, por sua inerente marginalidade em relação ao mercado editorial mainstream , ainda encontra pouca repercussão entre a crítica dita especializada. A sua estreia no formato mais tradicional e mais conhecido do livro se deu com Flor de gume , em 2020. Trata-se de uma coletânea de contos que tem chamado cada vez mais atenção tanto da crítica quanto do público geral, ambos compelidos, em parte, pela contemplação do livro com o Prêmio Jabuti em 2021, mas também pelo esforço braçal e miúdo de circulação da obra entre grupos de leitura de mulheres e grupos de estudo.   A escrita penetrante de Flor de gume , prenunciada desde o próprio título, não é avessa à narração do acontecimento cotidiano, muitas vezes marcado pela violênci...

Boletim Letras 360º #582

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Cristovão Tezza. Foto: Guilherme Pupo LANÇAMENTOS   Cristovão Tezza reescreve e publica o seu segundo romance; inspirado nos anos em que fez parte de uma comunidade de teatro, e uma sociedade alternativa, liderada pelo escritor e dramaturgo W. Rio Apa .   Antes de se tornar o renomado romancista, cronista e crítico que é hoje — com uma impressionante lista de livros publicados e laureado com vários dos principais prêmios da literatura brasileira, como o Prêmio Jabuti, Prêmio São Paulo de Literatura e Prêmio Literário Biblioteca Nacional —, Cristovão Tezza, durante os anos de 1968 a 1976, fez parte de uma comunidade de teatro, no litoral do Paraná, liderada pelo escritor, dramaturgo e teatrólogo W. Rio Apa (1925-2016). Da rica experiência comunitária, de onde se firmou o seu fascínio pelo mundo artístico e literário, nasceu Ensaio da paixão , romance com fortes traços autobiográficos, lançado originalmente em 1986, e que agora ganha uma nova edição revista pelo autor. A partir ...

Quatro pessoas

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Por Alejandro Zambra Jacob Lawrence. The Businessman   Quão solitário é o trabalho de um escritor?   Pergunta-me um amável desconhecido, por pura curiosidade, ao fim de uma sessão de leituras. Respondo vacilante, não estou seguro. Penso no lugar-comum do escritor trancafiado por muitas horas, lutando com suas convicções, com seus desejos. Lembro-me deste fragmento tão dramático e de certa forma cômico em que Kafka confessa o desejo de isolar-se em uma caverna, apenas com uma lâmpada e seus materiais de escrita: “Haveriam de trazer-me a comida e a deixariam sempre longe de onde eu estava instalado, atrás da porta mais externa da caverna. Ir buscá-la, em roupa de dormir, passando por todas as abóbadas, seria meu único passeio.”   Ao escrever ficamos ausentes do mundo e por vezes dias inteiros se passam em que saímos apenas para comprar cigarros ou levar o cachorro para passear (e costuma ser o cachorro que nos leva para passear). Mas não estou certo de que escrever sej...

O rosto na cidade

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Por Liliana Muñoz Georges Rodenbach. Foto: Felix Nadar   Não hesitaria em qualificar Bruges, a morta , de Georges Rodenbach (Tournai, Bélgica, 1855-Paris, 1898), como um romance que é perfeito. Já na altura da sua publicação, em 1892, despertou o interesse da crítica: foi o primeiro romance em que tanto o texto como a imagem — neste caso, as fotografias da sofrida Bruges — desempenharam um papel primordial. Contudo, o seu mérito não reside nos aspectos meramente formais, mas em outras questões que considero essenciais discutir neste texto: a forma como o significado se aproxima e nos escapa, a forma como os significantes dialogam entre si, se entrelaçam, desdizem, comovem e nos falam de um romance plural, no sentido barthesiano do termo. Assim, a cidade, as vozes, os sinos, a imagem da mulher, o amor-paixão ou a morte são veículos para nos falar de outra coisa, para nos aproximar, como diria Borges, da iminência de uma revelação que não se produz. 1   Aproximar-se de Bruges,...

Ou quando a terra voltar a brilhar verde para ti

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Por Eduardo Galeno A morte de Empédocles , 1987. Sabzian.   Se você quiser efetuar algo de parâmetro, que inaugure a tecitura do ponto em que surge a obra, você precisa pesquisar. Pesquisar: avaliar, reter, permitir, desafogar, enfim, aquilo que vem antes. A pesquisa é uma techné ; a arte, em suma, seria uma pesquisa que não possui limites. Técnica permeável, ir para cima e ao lado do objeto. Possuí-lo, agarrá-lo. Obsessão, transferência, violação de leis. Você precisa. A isso, você deve estar abalado, confundido com a própria contemplação. Você deve morrer como se morre em vida ou deve morrer em vida. Para se sustentar, sustentar a necessidade: eu preciso, alguém precisa, a obra precisa, o mundo precisa. Ou nada: fazer por fazer. Simplesmente.    Isso mesmo que está em eterno processo no filme A morte de Empédocles (1987), de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Processo pelo qual o valor obra passa numa divisão. Ele está dentro ou fora de tudo. Existindo um texto-bas...