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Todd Haynes e suas destruidoras de lares

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Por Bruno Padilla del Valle Cate Blanchett e Rooney Mara, em Carol  (2015).   Inscrever o trabalho do diretor e roteirista Todd Haynes (Los Angeles, 1961) ao cinema queer parece tão reducionista quanto fixá-lo ao cinema de mulheres , rótulos tão absurdos quanto seria falar de cinema heteronormativo ou de homens, embora até recentemente tenham prevalecido. Em qualquer caso, a obra cinematográfica do estadunidense poderia ser considerada como um cinema com abordagem de gênero, que se integra plenamente numa narrativa e num estilo visual poderosíssimos. Ele mesmo afirmou que, desde seus primeiros filmes, a teoria feminista marcou seu pensamento criativo: “Tudo o que me fez questionar o que significava ser homem — e o quanto minha sexualidade desafiaria perpetuamente esses significados — pude encontrar nos argumentos feministas. […] me senti identificado”. A identidade, precisamente, é um dos temas substanciais da sua filmografia e, em particular, sim, a das mulheres.   Após...

“Filho nativo”: o primeiro grande romance afro-americano

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Por José Antonio Gurpegui Toni Morrison afirmava que a arte não devia ser despojada de algum tipo de implicação política e dava como exemplo disso o romance de Richard Wright, Native Son (traduzido como Filho nativo ). A publicação desse livro em 1940 abalou o panorama narrativo estadunidense e, segundo o renomado professor Irvin Howe, é o romance de maior influência social em toda a literatura dos Estados Unidos.   Nele, a degradante realidade social dos afro-americanos já delineada pela chamada “Renascença do Harlem” durante as décadas de 1920 e 1930 foi capturada artisticamente pela primeira vez. Depois vieram Black Boy (1945), também de Wright, Homem invisível (1952), de Ralph Ellison, ou Go Tell It on the Mountain (1953), de James Baldwin, que constituem um indiscutível cânone literário afro-americano ou os alicerces de uma literatura que culminaria com a atribuição, em 1993, do Prêmio Nobel de Literatura para a autora de Amada .   Bigger Thomas, o protagonista de Fil...

A máquina do doutor William Carlos Williams

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Por Tedi López Mills William Carlos Williams. Foto: Arquivo da Universidade da Pensilvânia.   Certa vez, enquanto procurava informações sobre o poema “The Desert Music” de William Carlos Williams na Internet, me deparei com um site curioso : Write An Instant William Carlos Williams Poem . 1 Parecia uma grande oportunidade. Abri a página e vi que para exemplificar sua metodologia o site utilizava um poema curto e intensamente circunstancial do poeta estadunidense, incluído na primeira edição de seus Collected Poems de 1934:   Isto é só para dizer Eu comi as ameixas que estavam na geladeira as quais você decerto guardara para o desjejum Desculpe-me estavam deliciosas tão doces e tão frias 2   O procedimento proposto pelo site era muito simples, mas não transcreverei aqui o resultado do meu exercício. Inicialmente, este poema de Williams foi uma espécie de paradigma do movimento dos Imagistas. À luz deste jogo, revela-se literalmente que se trata de uma questão...

Seis poemas de Tao Yuan-ming em “Regresso a Casa”

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Por Pedro Belo Clara (Seleção e versões)   O BARCO VAZIO   O barco vazio flutua à deriva, sem remo Volteando uma e outra vez, sem parar O ano começa; olho para o alto e de súbito Estamos já a meio do ciclo das estrelas   Na janela virada ao sul, nada esbatido ou mirrado Os bosques do norte vicejam de folhas e fruta O Abismo Etéreo derrama uma chuva bem-vinda No rubor da madrugada, a melodia das brisas estivais   Se aqui chegámos, não devemos também partir? O destino do homem prevê um dia final Abraçando o eterno, aguardamos pelo fim Do braço faço almofada, quem perturba a paz em mim?   Aceitando as mudanças, suaves ou duras Indiferente à turbulência dos desejos — Vivo já em tão sublimes alturas Que necessidade há de subir aos picos sagrados? 1     PRIMAVERA NA MINHA QUINTA, PENSANDO NOS ANTIGOS   O velho mestre 2 deixou-nos o ensinamento: Cuidai do Caminho e não da pobreza   Tem a minha reverência, mas estava além da compreensão Assim, d...

Boletim Letras 360º #593

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Adélia Prado. Foto: Marilêne Marinho LANÇAMENTOS O resgate da obra completa do escritor goiano Hugo de Carvalho Ramos apresenta vários textos publicados pela primeira vez em livro .   1. O primeiro volume de Hugo de Carvalho Ramos: obras reunidas apresenta o conjunto de contos intitulado Tropas e boiadas (1917), obra mais conhecida do autor goiano e a única publicada em vida. Trata-se de histórias que evocam aventuras e causos de um mundo agrícola bem anterior ao agronegócio brasileiro atual, sem cair, porém, no chavão regionalista da “cor local”. De sua primeira publicação, a coletânea logo chamou a atenção de grandes escritores brasileiros, como Monteiro Lobato (que viria a publicá-lo), Mário de Andrade e Guimarães Rosa. O volume reúne também uma série de poesias do autor, nas quais se percebe sua verve religiosa, quase mística, para além do catolicismo tradicional brasileiro. Tal produção é contextualizada por textos críticos do cineasta e pesquisador Lázaro Ribeiro, que retr...

Cemitério dos sonhos

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Por Renildo Rene   Paulina Chiziane. Foto: Nuno Ferreira Santos Há de se esperar que a arte do romance africano, desenvolvida vertiginosamente durante a segunda metade do século XXI, toque em alguns pontos-chaves do colonialismo. Se tratando de Moçambique, o país é outro que sofreu dos agouros dessa experiência e dos desastres marcados do avanço da guerra civil. Começamos a entender, pois, toda a complexidade e ambivalência residentes nas relações desse passado sendo abraçados por narrativas mais elásticas na sua escrita (com uma forma linguística apegada às tradições), e um modo de afirmação nacional obstinado a depurar todo trauma e destruição causados naquela terra. Não tomemos isso como regra de identificação, mas talvez seja um ponto de interseção muito interessante para se aventurar nessa literatura.   Ora, sabemos que tanto a escrita como a leitura de livros — elemento indispensável na formação de bons escritores — se estabeleceu em muitos desses países sempre por media...