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À que veio de Marte

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Por Eduardo Galeno Simone Weil. Foto: Babelio (detalhe).   ***   Tudo ou nada . Virgem vermelha, Simone Weil parece ter sido refém desse slogan. Não apenas refém, mas uma verdadeira conspiradora. Simone pareceu, também, uma caixinha, um lugar em que todo o universo cabia, todas as estrelas, todos os planetas e toda a magia das matérias e dos vazios.   Tudo ou nada . Tudo ao mundo e nada a ela; tudo a ela e nada ao mundo. Quem apostaria no corpo dessa judia — pequena, magra, frágil, que sofria de terríveis enxaquecas, de tuberculose e era míope — como espelho do cosmos, desse vasto material que “nada mais é do que uma grande metáfora”?¹ Quem sabe, essas palavras sejam concedidas a, igualmente, seu corpo… pequeno, mas grande… grande metáfora. A característica da experiência de Weil nos diz que chegar ao mundo não é nada fácil quando a disposição resulta entre olhar e comer. Olhar e… e… e… comer. Duas coisas que são tão fáceis, mas para ela, vinda de Marte, não eram. Não er...

A gente boa e má de Shirley Jackson

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Por Mercedes Alvarez Se o leitor destas linhas se deleita com casas senhoriais, mistérios não revelados, personagens excêntricos e rancores finamente destilados ao longo dos anos em pequenas cidades desconhecidas, certamente passará bons momentos com Sempre vivemos no castelo . Pode ser também que, antes de se aproximar deste romance, o leitor destas linhas morda a isca e acredite que vai se deparar com um clássico do gênero terror. Nosso dever, entretanto, é alertar que, embora alguns momentos da obra de Shirley Jackson (1916-1965) possam ser considerados aterrorizantes, não se trata de um romance de terror “habitual”.   A protagonista desta história é Mary Katherine Blackwood mas todos a chamam por Merricat. Mora com sua irmã Constance, o tio Julian e o gato Jonas, após o restante da família (seus pais e a esposa de Julian) morrerem envenenados dentro da própria casa, em circunstâncias não esclarecidas pela justiça e nem pelos próprios membros da casa. O assunto preocupa especial...

Boletim Letras 360º #598

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Benito Pérez Galdós. Foto: Arquivo Casa-museu Galdós LANÇAMENTOS   Nova edição e tradução brasileiras de um dos principais romances de Benito Pérez Galdós .   Poucas obras têm a capacidade de representar de maneira tão clara e com um caráter tão distinto as tendências literárias de uma época quanto o romance Dona Perfecta , de Benito Pérez Galdós. Publicado entre março e maio de 1876 em La Revista de España , este folhetim realista encena todos os conflitos sociais de um país que opunha as tradições rurais com os avanços das cidades grandes. Lançada entre a preservação de valores católicos mais rígidos e as necessidades econômicas, a jovem Rosarito se encontra no centro dos interesses de sua mãe, Dona Perfecta, que vê um futuro para a filha no casamento com o primo Pepe Rey, um jovem educado em um ambiente mais progressista. O amor pelo noivo e a personalidade inconstante de Rosarito reforçam o eixo central de Dona Perfecta , uma personagem moldada para representar os ideais c...

Sr. Baldwin e seus pequenos blues

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Por Renildo Rene James Baldwin. Foto: Ulf Andersen   I get a feeling that I never, never had before. Começo a escutar aquela voz solitária de Etta James como se estivesse ouvindo a faísca de uma agitação. As batidas de todos aqueles instrumentos entram depois em cena e inicia um frenesi impossível de não conquistar. Certamente é uma canção muito energética, porém tem algo escondido ali, profundamente: a sensação estranha, na letra, e a grande rainha do Blues sabe, é precedida por um coração pesado de viver, mesmo quando os pés só dançam . Afinal, é 1962 e não é inocente como imaginamos a canção: é a liberdade bradando algo pesado e preso, enquanto se prepara para ser ferido novamente.   Enquanto “Something’s Got A Hold Me” se tornava esse clássico incontornável, James Baldwin escrevia na época sobre essa capacidade do Jazz e Blues serem ritmos da outra independência norte-americana, com “acidez, ironia, autoritarismo e dubiedade”. Sem quaisquer rodeios, ele afirma serem as...

Edna O’Brien, quando a paisagem é um tapete embaixo do qual escondemos a dor da memória

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Por Ricardo Martínez Llorca Edna O'Brien. Foto: Mark Gerson Depois dos dinossauros, veio a inquisição, que continua a queimar livros em público. Na Irlanda de Edna O’Brien, o que aconteceu foi o mesmo que nos territórios que são extensões sem lei, cuja ordem é imposta pelo rigor do músculo, geralmente a serviço do excesso de álcool e de algum padre desalmado. Porque para deixar de amar as criaturas que fazem parte da sua tribo é preciso ter perdido a alma. E a bondade é substituída por regras rígidas.   O padre fanático e o bêbado coincidem porque ambos estão aferrados a paredes sem janelas. Além do seu quadrado em forma de confessionário ou da garrafa, não existe nada que valha a pena respeitar. Se forem obrigados a mostrar as pontas dos cílios do outro lado da parede, o ponto a que foi reduzido o seu coração os levará à violência. Nesse caso, o alcoólatra é um pai que baterá na mulher e na filha pequena, e o padre é um tipo tão grotesco a ponto de pensar que, ao mesmo tempo em qu...

Não posso ficar com você: “Vidas passadas”

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Por Cristina Aparicio Há filmes que parecem construídos a partir de momentos, filmes que condensam a realidade e a fragmentam em inúmeras imagens. É o que se poderia definir como cinema postal, de slides, de páginas de um álbum de fotografias vintage que guarda memórias. Mas o que exatamente são essas imagens arquivadas? Com o passar do tempo, a única coisa que parece verdadeiramente imutável é o que as fotografias mostram. Tudo o que envolve a cena fotografada (as emoções, o que está imediatamente antes ou depois da sua captura, o que está por trás da câmera...) está sujeito à capacidade de cada pessoa fixar as coisas na memória, a toda uma subjetividade da qual depende de mil fatores psicológicos, emocionais, circunstanciais... Então o que fica, o que é real, o que sempre dura, é a imagem fixa, que funciona como um interruptor que abre uma porta para a recordação. Não é por acaso que quase não há fotografias num filme como Vidas passadas , um filme que reflete precisamente sobre o po...