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Em “O último pub”, a esperança talvez não seja obscena

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Por Ernesto Diezmartínez Próximo do desfecho de O último pub (Reino Unido-França-Bélgica, 2024), trigésimo longa-metragem do veterano cineasta inglês à beira da aposentadoria Ken Loach — desde sua inesquecível estreia com Pobre vaca (1967), até a cansativa obra da maturidade Você não estava aqui (2019), passando por peças centrais do cinema britânico como Kes (1969), Riff-Raff (1991) ou Felizes dezesseis (2002) —, o sensível sexagenário TJ Ballantyne (Dave Turner) enfrenta um amigo de longa data que, por mero ressentimento, ajudou a sabotar um ato de generosidade organizado pelo próprio TJ em seu decadente pub, The Old Oak, que abriu suas antigas portas para receber um grupo de imigrantes sírios.   TJ está mais decepcionado do que chateado. Ele compreende e partilha o diagnóstico: aquele povoado mineiro de Durham já viveu os seus melhores tempos, as políticas de Thatcher acabaram com tudo há décadas, não há trabalho em lado nenhum e os poucos jovens que ficam mal crescem e a...

À que veio de Marte

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Por Eduardo Galeno Simone Weil. Foto: Babelio (detalhe).   ***   Tudo ou nada . Virgem vermelha, Simone Weil parece ter sido refém desse slogan. Não apenas refém, mas uma verdadeira conspiradora. Simone pareceu, também, uma caixinha, um lugar em que todo o universo cabia, todas as estrelas, todos os planetas e toda a magia das matérias e dos vazios.   Tudo ou nada . Tudo ao mundo e nada a ela; tudo a ela e nada ao mundo. Quem apostaria no corpo dessa judia — pequena, magra, frágil, que sofria de terríveis enxaquecas, de tuberculose e era míope — como espelho do cosmos, desse vasto material que “nada mais é do que uma grande metáfora”?¹ Quem sabe, essas palavras sejam concedidas a, igualmente, seu corpo… pequeno, mas grande… grande metáfora. A característica da experiência de Weil nos diz que chegar ao mundo não é nada fácil quando a disposição resulta entre olhar e comer. Olhar e… e… e… comer. Duas coisas que são tão fáceis, mas para ela, vinda de Marte, não eram. Não er...

A gente boa e má de Shirley Jackson

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Por Mercedes Alvarez Se o leitor destas linhas se deleita com casas senhoriais, mistérios não revelados, personagens excêntricos e rancores finamente destilados ao longo dos anos em pequenas cidades desconhecidas, certamente passará bons momentos com Sempre vivemos no castelo . Pode ser também que, antes de se aproximar deste romance, o leitor destas linhas morda a isca e acredite que vai se deparar com um clássico do gênero terror. Nosso dever, entretanto, é alertar que, embora alguns momentos da obra de Shirley Jackson (1916-1965) possam ser considerados aterrorizantes, não se trata de um romance de terror “habitual”.   A protagonista desta história é Mary Katherine Blackwood mas todos a chamam por Merricat. Mora com sua irmã Constance, o tio Julian e o gato Jonas, após o restante da família (seus pais e a esposa de Julian) morrerem envenenados dentro da própria casa, em circunstâncias não esclarecidas pela justiça e nem pelos próprios membros da casa. O assunto preocupa especial...

Boletim Letras 360º #598

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Benito Pérez Galdós. Foto: Arquivo Casa-museu Galdós LANÇAMENTOS   Nova edição e tradução brasileiras de um dos principais romances de Benito Pérez Galdós .   Poucas obras têm a capacidade de representar de maneira tão clara e com um caráter tão distinto as tendências literárias de uma época quanto o romance Dona Perfecta , de Benito Pérez Galdós. Publicado entre março e maio de 1876 em La Revista de España , este folhetim realista encena todos os conflitos sociais de um país que opunha as tradições rurais com os avanços das cidades grandes. Lançada entre a preservação de valores católicos mais rígidos e as necessidades econômicas, a jovem Rosarito se encontra no centro dos interesses de sua mãe, Dona Perfecta, que vê um futuro para a filha no casamento com o primo Pepe Rey, um jovem educado em um ambiente mais progressista. O amor pelo noivo e a personalidade inconstante de Rosarito reforçam o eixo central de Dona Perfecta , uma personagem moldada para representar os ideais c...

Sr. Baldwin e seus pequenos blues

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Por Renildo Rene James Baldwin. Foto: Ulf Andersen   I get a feeling that I never, never had before. Começo a escutar aquela voz solitária de Etta James como se estivesse ouvindo a faísca de uma agitação. As batidas de todos aqueles instrumentos entram depois em cena e inicia um frenesi impossível de não conquistar. Certamente é uma canção muito energética, porém tem algo escondido ali, profundamente: a sensação estranha, na letra, e a grande rainha do Blues sabe, é precedida por um coração pesado de viver, mesmo quando os pés só dançam . Afinal, é 1962 e não é inocente como imaginamos a canção: é a liberdade bradando algo pesado e preso, enquanto se prepara para ser ferido novamente.   Enquanto “Something’s Got A Hold Me” se tornava esse clássico incontornável, James Baldwin escrevia na época sobre essa capacidade do Jazz e Blues serem ritmos da outra independência norte-americana, com “acidez, ironia, autoritarismo e dubiedade”. Sem quaisquer rodeios, ele afirma serem as...

Edna O’Brien, quando a paisagem é um tapete embaixo do qual escondemos a dor da memória

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Por Ricardo Martínez Llorca Edna O'Brien. Foto: Mark Gerson Depois dos dinossauros, veio a inquisição, que continua a queimar livros em público. Na Irlanda de Edna O’Brien, o que aconteceu foi o mesmo que nos territórios que são extensões sem lei, cuja ordem é imposta pelo rigor do músculo, geralmente a serviço do excesso de álcool e de algum padre desalmado. Porque para deixar de amar as criaturas que fazem parte da sua tribo é preciso ter perdido a alma. E a bondade é substituída por regras rígidas.   O padre fanático e o bêbado coincidem porque ambos estão aferrados a paredes sem janelas. Além do seu quadrado em forma de confessionário ou da garrafa, não existe nada que valha a pena respeitar. Se forem obrigados a mostrar as pontas dos cílios do outro lado da parede, o ponto a que foi reduzido o seu coração os levará à violência. Nesse caso, o alcoólatra é um pai que baterá na mulher e na filha pequena, e o padre é um tipo tão grotesco a ponto de pensar que, ao mesmo tempo em qu...