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Freud contra C. S. Lewis no Apocalipse

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Por Juan Manuel González   Metade expiação vital do próprio Freud, encarnado por Anthony Hopkins com sua habitual desenvoltura, metade combate ideológico sustentado no confronto que mantém com C. S. Lewis, interpretado por Matthew Goode, A última sessão de Freud (2023) é um filme bem-intencionado e mesmo agradável, ainda que aquele ar de filme definitivo, apropriado, puramente inglês, no final não lhe faça grande favor.   Mas em tempos de plataformas e estreias em todos os lugares, um filme como este de Matthew Brown é sempre bem-vindo. Sua escolha deliberada pelo entretenimento adulto e intelectual — o filme é, afinal, um constante confronto de ideias — é incomum na cena pluricinematográfica contemporânea. Anacrônica e ultrapassada como parece se alguém olha com desinteresse o cartaz, sensação por outro lado perfeitamente compreensível, A última sessão de Freud faz da correção e da compostura sua bandeira. Também não são características repreensíveis.   O problema com...

Sobre a ironia e três irônicos: Eça, Machado e Saramago

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Por Henrique Ruy S. Santos A reflexão e o estudo da ironia têm séculos de história e remontam, como quase tudo, à Grécia Antiga, cujos principais pensadores a analisavam sob o prisma das artes retóricas. Na literatura, mais do que artifício retórico, foi incorporada pelo Romantismo alemão como uma forma peculiar de enxergar tanto o mundo quanto a linguagem, colocando sob escrutínio o próprio fazer literário e as próprias condições de narratividade. Dito isso, para este texto, gostaria de partir de uma definição talvez pouco literária, mas que lança luz sobre aspectos que valem a pena ser conferidos.   Oswald Ducrot, principal nome da Teoria da Enunciação, explica a ironia como maneira de fundamentar sua teoria polifônica da enunciação. Para Ducrot (1987), não há apenas um único responsável por um enunciado, mas pelo menos três entidades distintas: o sujeito falante, o locutor e o enunciador. O primeiro é a pessoa de carne e osso responsável pelo proferimento do enunciado (do ponto ...

Para lembrar João do Rio, o ficcionista

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Por Pedro Fernandes João do Rio, 1912. Revista Fon Fon . Como é comum para a imensa maioria dos escritores brasileiros, a obra de João do Rio encontra-se engalfinhada na mesma fila da longa espera por uma publicação organizada — definitiva, como se costuma dizer. Projetos dessa natureza são cada vez mais escassos num mercado editorial completamente seduzido pelo capital, e assim, quando muito, interessado apenas no essencial. E, nesse caso, o destino da obra do cronista padece ainda de outra miséria: entrada em domínio público, cada editor publica, muitas vezes, edições de qualquer maneira, visando o único critério do lucro.   Também, certa escolha dos destinos do nosso cânone, congeminada ao centralizador interesse do modernismo paulista, atingiu em cheio a obra do cronista da Belle Époque carioca; o seu e outros nomes ficaram presos no nebuloso limbo do pré-modernismo e mesmo aqui acabaram jogados para o fundo das estantes porque existiram, no tempo deles, certas obras mais apro...

Boletim Letras 360º #599

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Édouard Louis. Foto:  Joel Saget LANÇAMENTOS Livro de Édouard Louis recém-publicado na França chega aos leitores brasileiros em vésperas à vinda do escritor francês ao país .   “Um quarto, um espaço, paredes, chave, dinheiro: cem anos depois, é também do que minha mãe precisava; não para se tornar escritora, mas para se tornar uma mulher mais livre e mais feliz. Woolf já havia entendido, cem anos antes, que a liberdade não é, em princípio, uma questão estética e simbólica, mas uma questão material e prática”. Essa reflexão, que dá corpo à narrativa, parte de um telefonema de Monique, mãe do autor, que, depois de abandonar sua cidade operária do norte da França e seu casamento, vive em Paris com um novo companheiro. Aos 55 anos e mãe de cinco filhos, sem diploma de nível superior ou carteira de motorista, sem saber usar sequer um computador, Monique se envolveu novamente com um homem que acabou por sustentá-la e, logo, foi submetida a todo tipo de degradação. Até que, uma noite...

Contra os poetas (II)

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Por Alejandro Zambra Giorgio De Chirico. Praça , 1913.   Dois anos atrás, os editores da Etiqueta Negra deram início a uma nova seção da revista que consistia em escrever contra os colegas, ou, como então me explicou Marcos Avilés, “contra os males do ofício, os vícios e enfermidades da ocupação”. Neste contexto Martín Caparrós escreveu contra os cronistas; Alberto Fuguet, contra os cineastas; e Marcos me pediu que escrevesse contra os poetas.   Aceitei, claro. Escrevi — a sério e brincando — uma diatribe a partir de minhas próprias experiências. Pareceu-me uma honra fazer uma versão incidental [de paso], modesta, do divertido ensaio de Witold Gombrowicz. 1 Lembro de logo ter recebido algumas reações favoráveis, que em geral valorizavam a veia satírica do artigo. E em seguida dele me esqueci, ou melhor, arquivei-o para sempre, ou pensava que para sempre.   Tempos depois, quando a publicação completava quase um ano, Luis Martínez Solorza, o homem polivalente por trás de ...

“Coelho maldito” e uma nova onda de literatura fantástica escrita por mulheres

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Por Vinícius de Silva e Souza Parece, e isso era desconhecido para mim, que existe uma nova onda de literatura fantástica escrita por mulheres surgindo nos últimos anos encabeçada pela norte-americana Carmen Maria Machado. Por mais que se aproxime melhor do realismo mágico, e esse enquadramento pode ser contestado, já que parece vir apenas da sua nacionalidade, a argentina Samanta Schweblin também segue na mesma linha; e agora, temos Bora Chung.   Da escritora sul-coreana, destaco a coletânea Coelho maldito , primeira obra dela editada no Brasil; são dez contos em que ela mistura horror e fantasia para tratar de temas caros ao universo feminino, mas também à natureza humana.   O conto que dá título à antologia abre o livro com louvor: utilizando-se da técnica do personagem que conta uma história, Chung nos leva bem ao terreno que estamos prestes a adentrar, costurando uma deliciosa história de vingança-barra-justiça.   Já “A cabeça”, uma das melhores e mais impactantes ...