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Afire, ou o cinema como possibilidade de salvação

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Por Alonso Díaz de la Vega   Que estranho é o cinema de Christian Petzold! E não por razões aparentes. Se prestarmos alguma atenção, dá um ar convencional: seu estilo é econômico e rejeita tanto o minimalismo que enfatiza a passagem do tempo, quanto o (pós)modernismo que explora a forma cinematográfica através de cortes, planos e sons notórios. Na filmografia de Petzold, como no cinema clássico, a câmera não é percebida, a narrativa e os atores assumem a liderança, mas às vezes ficamos desconcertados: Transit (2018) se passa na França ocupada pelos alemães, mas aparecem carros e roupas da atualidade; Barbara (2012) e Phoenix (2014), que junto com Transit compõem uma trilogia sobre o amor esmagado pela história, mantêm um diálogo com o Novo Cinema Alemão e sua radicalidade, enquanto Undine (2020) é uma fábula romântica entre um humano e um criatura aquática, embora não tenha efeitos especiais e se distraia refletindo sobre a história de Berlim.   Em Afire (2023), filme m...

Os sons acariciadores

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Por Benjamín Barajas   Literatura e música estão ligadas desde a gênese de ambas as expressões artísticas. O teatro grego era acompanhado de cantos e instrumentos musicais em suas apresentações, e a poesia era inseparável da arte de Apolo nos recitais e banquetes da aristocracia ateniense; na verdade, o gênero da poesia lírica só era compreendido através do acompanhamento da lira.   Aristóteles considerava que o centro de gravidade da épica, do teatro e da poesia ditirâmbica era a poiesis ou criação e estas artes visavam representar as imitações da natureza e dos homens, através da ação, enquanto a música reproduzia o ritmo, a melodia e a harmonia e, sendo uma expressão das paixões, servia para moldar o humor das pessoas. Aristóteles não desenvolveu uma teoria da música, mas valorizou a sua utilidade; na Política recomenda-a para entreter, distender as tensões e purificar a alma dos ouvintes.   A reflexão sobre as qualidades artísticas intensifica-se durante o moviment...

Dorian Gray: a representação do sujeito contemporâneo

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Por Herasmo Braga Carly A F. Dorian Gray . Sem ser generalista ou peremptório, mas o reconhecemos que um dos traços fundamentais, marcadores dos grandes textos literários se encontra na perenidade e na constante atualização da obra diante de diversos contextos da contemporaneidade. Esses aspectos se fazem presentes, por exemplo, em O retrato de Dorian Gray , de Oscar Wilde. Impressiona como a leitura do sujeito, ao tempo da escrita, final do século XIX, diz muito do sujeito do século XXI. E isso não apenas nos defeitos e dilemas, mas sobretudo no modus pensandi que perpetua na contemporaneidade. O ser hodierno de Dorian expressa deveras o da atualidade.   Ao se remeter ao diálogo traçado em um momento do romance entre Dorian e o Lord Henry, enuncia-se o sentimento típico de hoje: “‘Ser bom é estar em harmonia com o nosso eu’”, ele respondeu, tocando a haste fina de seu copo com os dedos pálidos, pontudos. ‘A discórdia é sermos forçados a estar em harmonia com outros. A nossa próp...

Boletim Letras 360º #604

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Gerald Murnane. Foto: Aaron Francis LANÇAMENTOS   A estreia brasileira de um dos nomes de destaque na literatura australiana recente: Gerald Murnane .   Publicado pela primeira vez em 1982, As planícies  apresenta uma meditação sobre território, memória, amor e cultura, a partir da busca existencial de um jovem cineasta nas planícies do interior da Austrália. O livro é publicado pela editora Todavia; tradução de Caetano W. Galindo. Você pode comprar o livro aqui . Primeira e mais ampla antologia brasileira com a poesia de Hans Magnus Enzensberger .   Nascido no Período Entreguerras, Hans Magnus Enzensberger cresceu na Alemanha nazista e refletiu, em poemas e ensaios, sobre a experiência histórica de viver no mundo conturbado que se desdobrou desde então. Destinatário desconhecido: uma antologia poética (1957-2023) reúne noventa de seus mais importantes poemas, selecionados e traduzidos do alemão pelo poeta e professor Daniel Arelli, que também traduziu a poesia de H...

Rabelais perdeu a oportunidade (1959)

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Por Louis-Ferdinand Céline Gustave Doré. Gargantua, personagem criada por François Rabelais.   (Uma entrevista sobre Gargantua e Pantagruel concedida ao Le Meilleur Livre du Mois )   Você quer que eu lhe fale de Rabelais? certo, hoje de manhã folheei de novo a Enciclopédia , então, agora eu sei. Tem tudo lá dentro, na Grande Enciclopédia . Fazem-se carreiras formidáveis com isso. Justamente, procurei a palavra “Rabelais”.                 Veja, com Rabelais, falam sempre do que não se deve. Dizem, repetem por toda parte: “É o pai das letras francesas”. E, então, há o entusiasmo, elogios, que vão de Victor Hugo a Balzac, a Malherbe. O pai das letras francesas, ulalá! não é tão simples. Na verdade, Rabelais perdeu a oportunidade. Sim, ele perdeu a oportunidade. Não conseguiu.                 O que ele queria fazer, era uma lingua...

Para conhecer melhor Lydia Davis

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Por Kit Maude Lydia Davis. Foto: Colin McPherson  Seria possível dizer que a segunda década do século XXI tem sido a da escritora estadunidense Lydia Davis. Depois da publicação, em 2009, da reunião de seus contos, The Collected Stories of Lydia Davis , em poucos anos passou a ser reconhecida como uma das grandes figuras da literatura em seu país, exercendo tamanha influência que de repente não era incomum ouvir reclamações de professores nos cursos de escrita criativa de que todos os alunos queriam escrever parecido com ela. Mas esse sucesso não veio do nada. Davis já era uma figura respeitada em seu meio; filha de um casal de escritores — Robert Gorham Davis e Hope Hale Davis — e uma tradutora de prestígio, sempre teve consigo um público, embora não muito grande, fiel para sua obra.   As razões pelas quais um escritor de repente se torna um fenômeno editorial enquanto outros não são muitas vezes um mistério. Mas este não é o caso aqui. Davis especializou-se num tipo de conto...