Postagens

Maria Judite de Carvalho, a escritora das vidas silenciadas e o reconhecimento póstumo

Imagem
Por Tereixa Constenla Antes de completar 15 anos, Maria Judite de Carvalho (1921-1998) acumulou toda a tristeza do mundo. Em espaço curto de tempo perdeu os pais e um irmão, mas antes desses acontecimentos já tivera que se habituar a viver sem eles e adaptar-se à severidade das diferentes tias que a criaram em Lisboa. Entre a perda e a repressão, forjou-se a personalidade de uma escritora enigmática que sempre se esquivou da exposição pública, apesar dos aplausos que a sua obra obteve em Portugal desde a publicação do seu primeiro livro, em 1959.  O seu estar no mundo foi a antítese da popular Agustina Bessa-Luís, que a elogiou como “uma flor discreta” das letras portuguesas. Tal como recorda a neta Inês Fraga, “era daquelas pessoas que quase pedia licença para existir, que se recusava a ocupar espaço e não queria estar no centro das atenções, mas quando falava era penetrante e incisiva”.   Sua escrita também é assim, talhada com preciso bisturi. Mais do que uma retratista de ...

Boletim Letras 360º #605

Imagem
Mircea Cărtărescu. Foto: Leonhard Hilzensauer LANÇAMENTOS   A editora Mundaréu regressa à obra de Mircea Cărtărescu e publica livro mais desafiador do escritor romeno .   O nome do protagonista deste romance poderia bem ser o próprio Cărtărescu. Mas, em vez de escritor de renome internacional e multitude de prêmios, é um professor do ensino público em um bairro periférico de Bucareste. Ainda jovem, um malfadado sarau literário enterrou de vez suas pretensões literárias, restou apenas um diário para atestar o escritor que ele poderia ter sido. Trata-se, então, de autoficção de um duplo imaginário do escritor? Sua vida se resume a ir da escola para casa. Uma casa enorme, em forma de navio, construída por um cientista sobre um solenoide — um gerador de campo magnético que atrai todos os temas e obsessões literárias do escritor Cărtărescu, transformando a rotina do professor primário, para além do nonsense educacional e do terror do sistema de saúde, em um caracol de reflexões so...

Kafka, o uruguaio

Imagem
Por Alejandro Zambra Mario Levrero . Ramiro Alonso.   Certa vez Mario Levrero definiu sua obra como uma tentativa de traduzir Kafka para o espanhol. Especialmente em seus começos esta influência é importante, e há também passagens em seus últimos livros que lembram o Kafka dos Diários , mas creio que, por assim dizer, Levrero era muito mais uruguaio que kafkiano. Gosto de pensar que a tradução fracassou e que, graças a esse fracasso, Levrero acabou escrevendo uma obra pessoalíssima que ao longo dos anos encontrou seus leitores, não sei se numerosos, mas certamente bastante fiéis.   Também gosto do desconcerto provocado por O romance luminoso . Ainda há críticos que advertem “isso não é um romance”, como se sentissem obrigados a informar sobre o limite de garantia estatal para depósitos. Ademais, o próprio Levrero disse nas primeiras páginas do livro: “Um romance, atualmente, é qualquer coisa que se coloque entre capa e contracapa.” Levrero se mostra desejoso ou então resignado...

Solitária, de Eliana Alves Cruz

Imagem
Por Renildo Rene Eliana Alves Cruz. Foto: Eduardo Anizelli   É um romance de espaços. Sua condição prévia de leitura é examinar o destino das famílias vítimas de violências/ crimes — sumariamente ocorridos no dia a dia — do ambiente doméstico enquanto percorre o dispositivo mais significativo do racismo brasileiro: a arquitetura das residências urbanas e a condição contemporânea do “quartinho da empregada”. Em seu quarto romance, Eliana Alves Cruz se volta para o período histórico ainda não retratado nos anteriores, o século XXI, e coloca em tela cheia uma narração intrigante para a literatura contemporânea, cheia de personagens simbólicas, metáforas recorrentes e uma narrativa envolta no enredo policial.   Mabel e Eunice, filha e mãe, guardam histórias particulares no Edifício Golden Plate, lugar do trabalho materno que constitui o centro de relações, desgostos e decisões de suas vidas ao longo de um bom tempo. Na organização dos eventos, a primeira narra a apresentação mais ...

Afire, ou o cinema como possibilidade de salvação

Imagem
Por Alonso Díaz de la Vega   Que estranho é o cinema de Christian Petzold! E não por razões aparentes. Se prestarmos alguma atenção, dá um ar convencional: seu estilo é econômico e rejeita tanto o minimalismo que enfatiza a passagem do tempo, quanto o (pós)modernismo que explora a forma cinematográfica através de cortes, planos e sons notórios. Na filmografia de Petzold, como no cinema clássico, a câmera não é percebida, a narrativa e os atores assumem a liderança, mas às vezes ficamos desconcertados: Transit (2018) se passa na França ocupada pelos alemães, mas aparecem carros e roupas da atualidade; Barbara (2012) e Phoenix (2014), que junto com Transit compõem uma trilogia sobre o amor esmagado pela história, mantêm um diálogo com o Novo Cinema Alemão e sua radicalidade, enquanto Undine (2020) é uma fábula romântica entre um humano e um criatura aquática, embora não tenha efeitos especiais e se distraia refletindo sobre a história de Berlim.   Em Afire (2023), filme m...

Os sons acariciadores

Imagem
Por Benjamín Barajas   Literatura e música estão ligadas desde a gênese de ambas as expressões artísticas. O teatro grego era acompanhado de cantos e instrumentos musicais em suas apresentações, e a poesia era inseparável da arte de Apolo nos recitais e banquetes da aristocracia ateniense; na verdade, o gênero da poesia lírica só era compreendido através do acompanhamento da lira.   Aristóteles considerava que o centro de gravidade da épica, do teatro e da poesia ditirâmbica era a poiesis ou criação e estas artes visavam representar as imitações da natureza e dos homens, através da ação, enquanto a música reproduzia o ritmo, a melodia e a harmonia e, sendo uma expressão das paixões, servia para moldar o humor das pessoas. Aristóteles não desenvolveu uma teoria da música, mas valorizou a sua utilidade; na Política recomenda-a para entreter, distender as tensões e purificar a alma dos ouvintes.   A reflexão sobre as qualidades artísticas intensifica-se durante o moviment...