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José Donoso. Perito em monstros

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Por Claudio Zeiger José Donoso. Foto: Zuma Press   É tão óbvio quanto inevitável começar pela posição de José Donoso no boom latino-americano. Para não dizer tão mal e rapidamente, dir-se-ia que ele foi algo como a perna mais burguesa do grupo, a retaguarda clássica e saxónica (à frente dos afrancesados Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar), o abastado e mimado na infância, o leitor de Henry James. Tinha uma distância que o permitiu escrever uma História pessoal do Boom e um romance ( O obsceno pássaro da noite , um título complexo se eles existem) que deveria estar entre os textos canônicos do boom e ainda assim não está neste céu de Cem anos de solidão , A região mais transparente ou O jogo da amarelinha ; está, no entanto, num outro céu de matizes infernais, nebulosidade variável, um lugar turbulento onde terminam os romances que num momento parecem ameaçar a própria vida, desviam-se do rumo, andam por aí como almas penadas.   Donoso se fascinou com os seus colegas do b...

Boletim Letras 360º #607

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Ágota Kristóf. Foto: John Foley   LANÇAMENTOS   Mais três livros de Ágota Kristóf acessíveis para o leitor brasileiro .   Na impressionante Trilogia dos gêmeos ― que inclui os livros O grande caderno , A prova e A terceira mentira ―, Ágota Kristóf ergue o monumento literário que fez dela um dos maiores nomes da literatura europeia do século 20 e referência de artistas, escritores e pensadores de todo o mundo. Aqui acompanhamos a história dos gêmeos Claus e Lucas, deixados na casa da avó numa pequena cidade para que tenham alguma chance de sobreviver à guerra. Os anos que transcorrem são duros, assim como os desafios em que os dois se colocam e que por eles cruzam ― mas nenhum é maior que a separação entre eles. Enquanto acompanhamos a trajetória dos irmãos, testemunhamos também outras transformações igualmente marcantes: da Europa como continente, da própria noção de moralidade, do que pode ou não ser verdade, e até mesmo da prosa da autora, que se transforma à medida ...

Alfabeto das colisões, de Vladimir Safatle

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Por Herasmo Braga Vladimir Safatle Foto: Ana Paula Paiva   Observa-se hoje, sem grande esforço, o quanto diversas relações e instrumentos sociais têm ficado cada vez mais precarizados. Essa visão não é escatológica, e sim, pequena descrição de como as informações, ideias e manifestações opinativas têm resultado em sentidos distintos do que a trajetória da humanidade desenvolveu ao longo da sua história. Se antes a frase de Marx, contida na obra O 18 de Brumário , “Tudo que é sólido desmancha-se no ar”, hoje, a maior parte das informações e das opiniões não se sustentam à mínima observação crítica, ou mesmo possuem em seu interior alguma base constitutiva de argumentos. Na contramão dessa precarização hegemônica, há livros com ideias fundamentadas que fazem despertar a atenção não pelo apelo, e sim, pela proposição que faz mover os sentimentos críticos que outros materiais buscam aniquilar. Um desses grandes exemplos é a obra do filósofo Vladimir Safatle, lançada recentemente e inti...

Dostoiévski, Os irmãos Karamázov e o que está permitido

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Por Tomás Baviera   Fiódor Dostoiévski viveu na segunda metade do século XIX, numa Rússia czarista que começava a incorporar certas reformas sociais. As obras que escreveu tiveram forte impacto em sua época. Os leitores de hoje também recebem seus romances com interesse. Provavelmente, a razão que explica, em grande parte, a relevância da obra desse escritor é que ele soube formular as questões que o homem moderno carregava dentro de si e, além disso, conseguiu oferecer respostas coerentes e adequadas para essas questões.   O projeto literário de Dostoiévski se desenvolve em um momento de forte influência ideológica. Inicialmente, ele conviveu com reformadores utópicos, até ser preso e condenado à Sibéria por crimes políticos. A experiência de conviver e trabalhar com os mais depravados e miseráveis ​​ da sociedade marcou-o profunda e definitivamente.   A leitura dos Evangelhos durante os anos de prisão serviu para a grande virada nas suas convicções. Das utopias modern...

A substância enfrenta ou repete a visão masculina?

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Por Alonso Díaz de la Vega   Em seu ensaio fundacional de 1973, “Women’s Cinema As Counter-Cinema”, a crítica feminista Claire Johnston denunciou a mitologia masculina que ainda subjuga as mulheres na tela. Graças ao fato de os homens as conceberem como estereótipos, os imaginários de diretores, roteiristas, produtores, até mesmo diretores de fotografia e editores, são transferidos para a tela na forma de ingênuas que seduzem os homens com sorrisos, ou feras sexuais que sufocam as suas vítimas como súcubos. As imagens, aliás, não param por aí, na abstração, pois reforçam os preconceitos dos espectadores. Nos últimos anos, as indústrias mais poderosas do mundo tentaram, sem entusiasmo, mudar estas representações, mas muitas vezes a solução não são mulheres complexas como as mulheres comuns, mas sim fantasias utópicas que, ao reduzirem a feminilidade ao estritamente heroico, são também opressivas e fomentam ideias como a de que as mulheres governantes consertariam o mundo. Margaret ...

De como evitar o afogamento entre livros: Roberto Calasso e as bibliotecas

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Por Mary Carmen Sánchez Ambriz Roberto Calasso. Foto: Enrica Scalfari Nadar entre os livros   Acumular livros não é o mesmo que possuir uma biblioteca. Um conhecido retrato do fotógrafo Rogelio Cuéllar captura José Emilio Pacheco (1939-2014) em sua biblioteca pessoal. Os livros não estão apenas nas estantes e na escrivaninha; há também volumes empilhados ao seu redor que inclusive chegam a cobrir (ou emparedar) parcialmente uma janela. Parece um redemoinho livresco. Como quem está no seu interior, sem medo do naufrágio iminente entre papéis e letras, o escritor olha para a câmera com serenidade.   Essa paisagem descreve muito bem o ambiente de onde surgia a coluna “Inventário”. Num tempo posterior à Enciclopédia Britânica (que Borges tanto elogiou), mas anterior à Wikipédia, Pacheco nadava entre os livros durante dias ou semanas para configurar textos que pareciam concentrar tudo em torno dos temas escolhidos, geralmente questões sociais ou políticas atuais, ou, ainda, o que e...