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Não ler

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Por Alejandro Zambra Arte: Sumuyya Khader   Como falar dos livros que não lemos é o título do ensaio de Pierre Bayard que por estes dias se lê ou ao menos se vende em todo o mundo. Não posso dizer muito mais sobre o livro pois, lamentavelmente, não o li, mas o tema me parece de imediato familiar.   Experimentei nos últimos anos a felicidade de não ler alguns livros que, se tivesse continuado trabalhando como crítico literário, deveria ter lido. Tiver de comentar certa vez, por exemplo, um pobre romance de Jorge Edwards inspirado na figura de Joaquín Edwards Bello, de modo que há alguns meses, ao saber que o novo alvo de Edwards para suas investigações novelísticas era o poeta Enrique Lihn, respirei bastante aliviado por não ler La casa de Dostoiesvsky . Pessoas com menos sorte que eu leram o romance e consideraram que ele prejudicava a memória de Lihn, motivo pelo qual Edwards — incensado de forma quase unânime por sua obra anterior — desta vez foi atacado injustamente, pois ...

Todos juntos, de Vilma Arêas

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Por Eduardo Galeno Num sentido certeiro, nós podemos enunciar que Vilma Arêas é mestre da forma breve. O que significa: ela detém esse aspecto correlativo que o conto curto — sem o floreio técnico da narração do romance ou da novela — precisa ter para dar seu respiro de vida.   Em Todos juntos , reunião de escritos ficcionais do período entre 1976 e 2023, quer dizer, de toda a sua ficção (que começa em Partidas , sob a ditadura militar, e escoa em Tigrão , escrito durante o governo Bolsonaro e a pandemia da covid-19), Arêas elenca variações do seu estilo como “contista”. Contista entre aspas: ela, além de resgatar a astúcia da velha estrutura das histórias lineares, também brinca com o conto não-genérico.   Vilma adentra num jogo que é assumidamente característico da contraparte dos escritores de nosso tempo: não generalizar. Ou melhor: não corresponder — pelo menos no limite da produção, do mercado e da distribuição literárias — ao ethos dominante. Seus contos poderiam ter...

Animalia, metafísica do fim de um mundo

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Por Bruno Padilla del Valle   O filme Animalia (Marrocos, 2023) é uma das surpresas no fértil terreno da fantasia, como endossado pelo Prêmio Especial do Júri Visão Criativa no Festival de Sundance, e a inclusão da diretora na lista dos “10 to Watch” da Unifrance, uma seleção de dez talentos emergentes do cinema neste ano, junto com outros três diretores franceses — e seis atores. Sofia Alaoui (Casablanca, 1990) estreia no longa-metragem com este título, mas um olhar sobre a sua carreira desde 2015 mostra que ela não é uma novata no audiovisual.   Fundamental em sua carreira foi o curta Qu'importe si les bêtes meurent (2020), que nessa categoria foi vencedor no Sundance e no Prêmio César, e que tem muito em comum com Animalia : as montanhas marroquinas do Atlas como cenário, diálogos em berbere, atores inexperientes (e, neste caso, não profissionais), componente sobrenatural e uma mistura de perspectiva documental e de fantasia que atualizou a singularidade dos filmes de Ja...

Um ditador na linha, de Ismail Kadaré

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Por Henrique Ruy S. Santos Ismail Kadaré. Foto: Eric Garault   Desde as primeiras luzes do racionalismo moderno, lançadas sobre o mundo por epígonos do Renascimento e do Iluminismo, as relações da arte com o mundo, digamos assim, externo se modificaram definitivamente. Afastando-se de maneira cada vez mais radical do domínio religioso e das funções de culto, a esfera do artístico passou a se autonomizar de maneira decisiva. A consagração do sentimento estético e da maneira tipicamente moderna como encaramos a ideia do Belo passa por esse processo de consolidação da arte como um mundo regido por valores próprios, ainda que, por vezes, subordinados a princípios absolutos.   Essa progressiva autonomização leva ao surgimento de tendências artísticas que, em última instância, se fecham sobre si mesmas e se concentram em seus próprios procedimentos e técnicas. O hermetismo literário, as concepções da ideia da arte pela arte e a popular imagem da torre de marfim são, de certa forma,...

José Donoso. Perito em monstros

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Por Claudio Zeiger José Donoso. Foto: Zuma Press   É tão óbvio quanto inevitável começar pela posição de José Donoso no boom latino-americano. Para não dizer tão mal e rapidamente, dir-se-ia que ele foi algo como a perna mais burguesa do grupo, a retaguarda clássica e saxónica (à frente dos afrancesados Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar), o abastado e mimado na infância, o leitor de Henry James. Tinha uma distância que o permitiu escrever uma História pessoal do Boom e um romance ( O obsceno pássaro da noite , um título complexo se eles existem) que deveria estar entre os textos canônicos do boom e ainda assim não está neste céu de Cem anos de solidão , A região mais transparente ou O jogo da amarelinha ; está, no entanto, num outro céu de matizes infernais, nebulosidade variável, um lugar turbulento onde terminam os romances que num momento parecem ameaçar a própria vida, desviam-se do rumo, andam por aí como almas penadas.   Donoso se fascinou com os seus colegas do b...

Boletim Letras 360º #607

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Ágota Kristóf. Foto: John Foley   LANÇAMENTOS   Mais três livros de Ágota Kristóf acessíveis para o leitor brasileiro .   Na impressionante Trilogia dos gêmeos ― que inclui os livros O grande caderno , A prova e A terceira mentira ―, Ágota Kristóf ergue o monumento literário que fez dela um dos maiores nomes da literatura europeia do século 20 e referência de artistas, escritores e pensadores de todo o mundo. Aqui acompanhamos a história dos gêmeos Claus e Lucas, deixados na casa da avó numa pequena cidade para que tenham alguma chance de sobreviver à guerra. Os anos que transcorrem são duros, assim como os desafios em que os dois se colocam e que por eles cruzam ― mas nenhum é maior que a separação entre eles. Enquanto acompanhamos a trajetória dos irmãos, testemunhamos também outras transformações igualmente marcantes: da Europa como continente, da própria noção de moralidade, do que pode ou não ser verdade, e até mesmo da prosa da autora, que se transforma à medida ...