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Matando Aurélio com golpes de Machado

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Por João Victor Uzer Hans Holbein. Portrait of Erasmus of Rotterdam (detalhe). Em outubro de 2024 o portal de notícias G1 divulgou uma reportagem sobre o uso de palavras e expressões antigas (do século XIX) nas redações do ENEM. “Outrossim”, “Com efeito”, “Não obstante”, “Dessarte”, “Azas”, “Mormente”. A lista é longa. Eu acho meio chumbrega essa mania da petizada de usar palavras do século XIX, prefiro as dos anos 1960 em diante. Mas quem sou eu para arrumar quiproquó?   A reportagem faz algumas suposições sobre o crescente uso de termos do século XIX nas redações do ENEM. A primeira é com relação ao estudo. Para escrever é preciso ler, então o aluno busca referências nos clássicos da literatura brasileira. O resultando é um cover anacrônico de Machado de Assis, José de Alencar, Castro Alves e assim ad infinitum . Outra causa possível remonta aos cursinhos. Um dos requisitos de avaliação da redação é o uso de conectivos, então alunos conseguem listas de conectivos para decorar ...

A vergonha, de Annie Ernaux

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Por José Woldenberg “Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho.” 1 Assim começa o testemunho/   romance/   reflex ã o de Annie Ernaux. Foi no dia 15 de junho de 1952, quando ela ainda n ã o tinha doze anos. A m ã e, de mau humor, reclamava com o pai at é que ele explodiu e a amea ç ou com um machado. Annie correu, pediu ajuda, chorou. “ Depois, saímos os tr ê s para andar de bicicleta numa área rural que ficava nos arredores. […] Nunca mais se falou no assunto. ”   O episódio, porém, jamais foi esquecido por aquela garota. “Depois, aquele domingo passou a ser uma espécie de filtro que ficava entre mim e todas as coisas que eu vivia.” Os pais de Annie a “adoravam”; a ameaça nunca se repetiu, mas gerou nela um alerta permanente e, sobretudo, uma vergonha indecifrável.   Ernaux reconstrói essa época: o seu presente de Natal, os postais recebidos, o missal utilizado, folheia os jornais antigos que falam das guerras da Indochina e da Coreia, dos filmes da época e da pub...

O urso e o poder terapêutico da arte

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Por Rafael Kafka Tenho repetido há algumas semanas em posts em meu Instagram que O urso tem perturbado minha mente. Acho que como todo leitor mais apaixonado, gosto da ideia de me encontrar no texto lido, seja ele escrito ou audiovisual. Mas a série de Ayo Edebiri me pegou de um jeito que não sei descrever. Eu me enxergo demais em Carmy Berzatto, o protagonista, que possui um talento sem igual na cozinha e fortes crises de ansiedade que muitas vezes beiram o pânico. Há outro detalhe que compartilhamos: o fato de termos perdido alguém próximo a nós e não termos processado plenamente esse luto.   Uma vez aprendi ouvindo um podcast sobre psicanálise que há muitas formas de alguém cometer suicídio. Quando digo isso não falo dos métodos em si de dar conta do ato, mas das diferentes maneiras em que a morte é atingida. Ainda não ficou claro como e o porquê, mas Michael se mata pouco antes do começo da sequência cronológica de O urso . Mesmo morto ele é um personagem constantemente menci...

Línguas ou Vita mortale e immortale dela bambina di Milano, de Domenico Starnone

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Por Sérgio Linard Domenico Starnone. Foto: Isabella De Maddalena   A escolha pela tradução do título original da recente novela de Domenico Starnone a chegar no Brasil, no primeiro momento, antes da leitura da obra, soa estranha ou arriscada. Como Vita mortale e immortale dela bambina di Milano foi vertido para Línguas ? Haveria, na obra, justificativa suficiente para tão radical mudança? Seria esta uma escolha de motivação mercadológica, para estabelecer relação de continuidade com o livro anterior do autor, Dentes ?¹ Após a leitura, vê-se que o tradutor Maurício Santana Dias fez uma escolha melhor do que a do próprio Starnone ao intitular sua obra. Para essa confirmação, porém, a leitura integral do texto é indispensável. E, por isso, aqui, meu único comentário acerca dessa tradução é o elogio. Sigamos ao texto.   É bem provável que Línguas seja o primeiro livro do autor, em terras brasileiras, a comportar-se como um divisor mais firme de opiniões. Este parece ser um caso ...

Han Kang, o romance como arte da deambulação

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Por Pedro Fernandes   O homem é um ser que oferece sua vida incondicionalmente para salvar uma criança caída nos trilhos do metrô, mas também é um ser que pode matar outro homem inocente em Auschwitz. Será então possível que o homem possa viver verdadeira e integramente neste mundo?   — Han Kang, “Meu estilo de escrita” Han Kang. Foto: Paik Duhim.   Quando, no Brasil, muitos acordavam ou ainda estavam na modorra do início da manhã, chegava às telas a notícia com o nome do Prêmio Nobel de Literatura, como acontece ano a ano. Desta vez, um espanto terá expulsado as últimas nuvens de sono que teimavam mesmo depois da xícara de café. Os atentos à rotina da Academia Sueca nos últimos anos esperavam o anúncio de uma escritora; as agências de aposta estimavam com a chinesa Can Xue que o júri finalmente deixaria o eixo Ocidental e privilegiaria, como muitas vezes foi recorrente, um nome fora da comunidade linguística anglo-saxônica ou nela protagonista. Han Kang confirmou a ...

Boletim Letras 360º #608

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Mario Vargas Llosa. Foto: Gianfranco Tripodo. LANÇAMENTOS   O último romance do Prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa chega aos leitores brasileiros .   A jornada de um homem que sonhou com um país unido pela música e enlouqueceu na tentativa de escrever o livro perfeito. O último romance do Prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa.   Toño Azpilcueta vive pela música tradicional peruana, e é, sem sombra de dúvida, a maior autoridade sobre o assunto no país. No entanto, em vez de desfrutar da merecida notoriedade entre a intelectualidade de Lima, ele utiliza seu vasto conhecimento escrevendo para revistas de pouca expressão. Uma noite, é convidado a uma soirée para conhecer um guitarrista de quem nunca ouvira falar. Seu nome é Lalo Molfino, e, assim que os primeiros acordes ressoam, o estudioso percebe que está diante de um talento impressionante. Ele prevê uma carreira de sucesso para o jovem músico, mas não muito tempo depois descobre que Lalo morreu na pobr...