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Corrigir até doer

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Por Alejandro Zambra Adolfo Couve   Nas narrativas de Adolfo Couve abundam os meninos silenciosos, as famílias discordantes e os artistas temperamentais desaparecidos na “deterioração infinita” de uma paisagem outrora esplendorosa e agora decadente que, justamente por isso, mostra-se encantadora, literária.   Desdenhando sua inegável destreza como pintor, o autor optou pelo desafio da escrita e por fim se transformou, como disse César Aira, em um eterno principiante da literatura que preferia polir infinitamente os traços e corrigir o texto até que ficasse reduzido a sua expressão mínima.   Talvez o próprio Couve, que se suicidou em 1998, teria se surpreendido com o fato de que os brevíssimos volumes que foi publicando em intervalos irregulares — precisava anexar prólogos e aumentar a letra para que pudessem ter lombada — agora totalizem as quase quinhentas páginas da sua Narrativa completa .   A despeito das notórias mudanças de perspectiva existentes de Alamiro (1...

O cultivo de penumbras: a obra de Murilo Rubião

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Por Henrique Ruy S. Santos Murilo Rubião. Foto: Arquivo pessoal   O que dizer de um escritor cuja totalidade da obra não passa da tímida produção de 33 contos? O que dizer do assombro que nos atinge quando percebemos que a exiguidade da produção escrita é inversamente proporcional à qualidade do texto, ao maravilhoso dos mundos criados?   Essas são só algumas das muitas perguntas que o contato inicial com a produção de Murilo Rubião nos impõe. A leitura de seus contos, reunidos pela Companhia das Letras em 2016 em uma edição de sua obra completa (edição do centenário do autor), logo nos surpreende pelo veio fantástico, que ainda hoje soa inovador em terras brasileiras. Os caminhos seguidos por nossa literatura no século XX, principalmente a partir da década de 1930, privilegiaram o desenvolvimento das tendências neorrealistas, ora em clave mais desbragadamente social, ora com inclinações à análise psicológica (nos melhores exemplos, tem-se a mistura das duas tendências). No pr...

Queer: a redenção de Burroughs a golpe de romantismo

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Por Alonso Díaz de la Vega   Há um episódio em Queer (1985), o romance de William Burroughs, que não aparece no filme Queer (2024), dirigido e escrito por Luca Guadagnino: William Lee, o alter ego do romancista psiconauta, acaba de ser ignorado pelo objeto de seu desejo, Gene Allerton, em um bar na Cidade do México. Lee, que costuma atrair a atenção dos outros por meio do que chama de rotinas — narrativas grotescas e oníricas de coisas que podem ou não ter acontecido com ele — é deixado sozinho, e mesmo assim ainda insiste em fazer um pequeno espetáculo ao ver que um trabalhador pegou um rato pelo rabo: carregado com várias cartelas de benzedrina e sua pistola com balas calibre .22, Lee atira na pequena cabeça do prisioneiro.   Para o professor Oliver Harris, especialista em literatura Beat, esse episódio demonstra que, durante a composição de sua obra, Burroughs pensava na morte supostamente acidental de sua esposa Joan Vollmer, ocorrida em 1951 na Cidade do México. O pró...

O monstruoso na literatura de Aurora Venturini

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Por Gabriella Kelmer Aurora Venturini. Foto: Claudia Bernaldo de Quirós   Publicados no Brasil pela Fósforo, com tradução de Mariana Sanchez, os romances As primas e Nós, os Caserta têm muito em comum. Este último — publicado inicialmente na década de 1960, depois reeditado em 1992 — tem a senioridade, tendo sido o ponto de inflexão em que talvez se tenha estabelecido, para a jovem Aurora Venturini, o espaço literário que a interessava ocupar. Entretanto, é sua literatura verdadeiramente descoberta na Argentina deste século apenas em 2007, por meio da vitória de As primas no prêmio Nova Novela do jornal Página/12 . Enfim, aos 85 anos, depois de décadas de uma imerecida desatenção do público, tornou-se, por uma radicalidade surpreendente no tratamento estético dado a temáticas pouco frequentes na literatura, uma escritora celebrada.   Fosse-me dado um único qualificador para a literatura da argentina, nas duas obras referidas, escolheria desconcertante. Não habitam em ...

O que nos observa em A árvore mais sozinha do mundo

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Por Vinícius de Silva e Souza Desde há alguns anos que Mariana Salomão Carrara vem se mostrando uma grande narradora. Sua obra, bastante característica, peculiar e madura desde o início, tem como cerne a narração e o tempo (não por acaso já se declarou, por diversas vezes, leitora de Elvira Vigna).   Mas, se em Se Deus me chamar não vou temos algo de cronológico na organização temporal da narrativa pelos olhos de uma criança, em É sempre a hora da nossa morte amém , temos uma narrativa mais intrincada e que se desdobra com o passar do tempo, na mente de uma mulher idosa; em Não fosse as sílabas do sábado trabalha com o vai e vem do luto também pelos olhos de uma única personagem; e, em A árvore mais sozinha do mundo , a autora rompe com estruturas estabelecidas para criar quatro narradores diversos que observam e discorrem sobre um mesmo ponto em comum: uma família.   O espelho, o carro, a roupa e a árvore. Partindo de objetos inanimados e sempre tão presentes no cotidiano,...

Boletim Letras 360º #617

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Katherine Mansfield. Foto: Ida Baker.   LANÇAMENTOS   Revisitar Katherine Mansfield. Linda Burnell, mãe de Kezia e Lottie, descansa no andar de baixo, enquanto sua mãe organiza a nova casa da família no interior da Nova Zelândia. Seu marido, Stanley, foi trabalhar, mas voltará sempre ansioso em rever a família. As filhas brincam de preparar o almoço em um degrau de concreto, e sua irmã canta canções de amor para um jovem imaginário. Ainda que a vida familiar seja exemplar, há algo vazio e intenso em Linda. A trama de A Aloe  remete às memórias da infância de Katherine Mansfield (1888-1923), mas engana aqueles que, à primeira vista, limitam a obra a um romance curto de memórias. Num fio que passa por três gerações de mulheres, o texto é repleto de conjecturas e experimentações estilísticas. Um tesouro redescoberto a cada nova leitura. Contemporânea de Virginia Woolf, com quem teve uma amizade complexa, com períodos de distanciamento e outros de muita proximidade e até cum...