Postagens

“Nada de novo no front”: monstruosidade e expressionismo no inferno da Grande Guerra

Imagem
Por Rubén Amón   A cena mais comovente de Nada de novo no front envolve um duelo de morte entre um soldado francês e um alemão no labirinto subterrâneo das trincheiras. O adolescente alemão que protagoniza o filme acaba levando a melhor, mas a vitória não contradiz a sensibilidade com que atende o soldado moribundo abatido. Trata de acompanhá-lo no transe da morte. Abraça-o. E extrai do seu casaco os papéis que o identificam, as cartas e as fotografias da esposa e da família.   A alegoria da camaradagem na atrocidade da guerra está muito bem refletida no romance original de Erich Maria Remarque (1929). E proporciona ao cineasta alemão Edward Berger uma passagem de profundas emoções e extraordinário vigor estético. A monstruosidade da Grande Guerra pode ser contada a partir de pressupostos expressionistas. E de um tratamento da imagem que transfere a ideia da matéria. Como se pudéssemos sentir o cheiro da tinta de uma tela recém-pintada. E como se a forma de sensibilizar o esp...

Vestígios de Carolina

Imagem
Por Pedro Fernandes Carolina Maria de Jesus. Foto: Ivo Barretti.   Repete-se com alguma constância que Carolina Maria de Jesus é ou foi uma escritora esquecida no âmbito literário brasileiro. O sucesso do seu diário Quarto de despejo desde quando foi publicado em agosto de 1960, entretanto, contradiz esse discurso. Mesmo assim, esse tipo de afirmativa, longe de pertencer exclusivamente à escritora mineira, se fixa como uma verdade inquestionável e não poucas vezes assume o tom de lugar-comum cujo intuito parece ser o de seduzir o leitor pela responsabilidade de uma obrigação, como se uma culpa original da qual faça o que fizer não conseguirá limpar o passado doloroso do esquecido.   É preciso dizer que o esquecimento nem sempre está associado à invisibilidade, embora seja correto afirmar a existência de práticas cujo intuito resulta na invisibilização e por conseguinte no esquecer. Mas, na maioria das vezes, esquecer é parte do processo de lembrar. As entradas e saídas na re...

Uma carta de Dmitri Likhatchôv

Imagem
Por Joaquim Serra   Dmitri Likhatchôv (1906-1999) foi um filólogo soviético, autor de diversos estudos sobre cultura e literatura russa. Em sua biografia Pensamentos sobre a vida: memórias , conta como foi sua formação na Petersburgo pré-revolucionária, os anos do terror, as diversas pessoas que conheceu na prisão e o que aprendeu em Solovki. Em fevereiro de 1928, foi preso por atividades contrarrevolucionárias e enviado ao Gulag. Durante a construção do Canal do Mar Branco, cumpriu parte da pena como contador e despachante ferroviário.   No livro Cartas sobre o bem e a beleza , Likhatchôv se dirige aos jovens leitores, reunindo seus principais pensamentos e o modo como enxerga a relação entre arte, cultura e sujeito. A “Primeira Carta”, traduzida abaixo, refere-se a um problema que nasce como um sistema de pensamento para virar uma atitude diante do mundo. Como um fragmento filosófico-formativo, Likhatchôv fala, por fim, sobre a vida, mostrando como os valores do grande mundo...

Boletim Letras 360º #525

Imagem
DO EDITOR   1. Uma semana intensa para os leitores do Letras. Realizamos mais um sorteio entre os apoiadores do blog. Os dois livros, aliás, já estão a caminho dos ganhadores. E apresentamos os quatro colunistas que acrescentam ainda mais o nosso projeto.   2. Não esquecemos de lembrá-los sobre as possibilidades de apoio ao Letras — para pagarmos as despesas de domínio e hospedagem de 2023 a 2024, sua ajuda é importante. Para participar do grupo de apoiadores ou descobrir outras formas de colaborar, basta ir aqui .   3. Uma dessas formas de apoio é a aquisição de qualquer um dos livros apresentados pelos links ofertados neste Boletim ou mesmo qualquer produto adquirido online usando este link .     4. Um fim de semana valioso para todos nós! Patrick Modiano. Foto: Francesca Mantovan   LANÇAMENTOS   Um novo livro de Patrick Modiano, Prêmio Nobel de Literatura de 2014 .   Um homem, uma mulher e a cidade de Paris. Em Um circo passa , Patrick Mod...

A vida como uma conversa entre amigos

Imagem
Por Cláudia Ayumi Enabe   A conversa é uma estrutura nevrálgica para os romances de Sally Rooney. Em Pessoas normais (Companhia das Letras, 2021), os acontecimentos ganham significância na experiência de troca entre Marianne e Connell, em uma espécie de conversa ininterrupta que se estende pela vida dos personagens, tanto nos encontros quantos nos instantes de desencontros. Mais do que o diálogo, é a situação conversacional que costura o discurso a entrelaçar essas duas vidas. Isso significa não somente as palavras e as ideias, mas também as hesitações, os segredos, os não-ditos e as mentiras integram a conversação como uma complexa prática de linguagem, na qual os silêncios constituem a densidade desse instante de confluência com o outro. Em uma “conversa entre amigos”, a confissão é um risco, deliberado ou não, mas inevitável. Talvez a conversa entre amigos seja ainda o único espaço em que essa troca de experiências ainda se preserve, em um movimento também de profunda humanida...

Fronteira — introspecção encontra uma casa

Imagem
Por Bruno Botto A obra de Cornélio Penna ficou um tempo fora de edição, era mais um dos autores que virava tesouro de sebos com edições carcomidas pelo tempo. Em meados de 2021, a editora Faria e Silva reeditou toda a sua obra, oferecendo outra uma vez a oportunidade de o público conhecer esse autor pouco conhecido.   Nascido em 1896, Cornélio era natural de Petrópolis, estudou direito em São Paulo e tinha fortes raízes familiares na zona da mata mineira. Durante a década de 20, começou a sua carreira como artista plástico no Rio, onde realizou a sua primeira exposição e trabalhou como ilustrador, gravador, desenhista e jornalista para algumas revistas. Em 1930 começa a segunda fase da vida artística de Cornélio, deixa as artes plásticas e escreve o seu primeiro romance, Fronteira , lançado em 1935.    A década de 30 também era a segunda fase do modernismo brasileiro predominado pelos romances regionalistas. Literatos de todo Brasil começam a construir suas histórias com ...