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A substância enfrenta ou repete a visão masculina?

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Por Alonso Díaz de la Vega   Em seu ensaio fundacional de 1973, “Women’s Cinema As Counter-Cinema”, a crítica feminista Claire Johnston denunciou a mitologia masculina que ainda subjuga as mulheres na tela. Graças ao fato de os homens as conceberem como estereótipos, os imaginários de diretores, roteiristas, produtores, até mesmo diretores de fotografia e editores, são transferidos para a tela na forma de ingênuas que seduzem os homens com sorrisos, ou feras sexuais que sufocam as suas vítimas como súcubos. As imagens, aliás, não param por aí, na abstração, pois reforçam os preconceitos dos espectadores. Nos últimos anos, as indústrias mais poderosas do mundo tentaram, sem entusiasmo, mudar estas representações, mas muitas vezes a solução não são mulheres complexas como as mulheres comuns, mas sim fantasias utópicas que, ao reduzirem a feminilidade ao estritamente heroico, são também opressivas e fomentam ideias como a de que as mulheres governantes consertariam o mundo. Margaret ...

De como evitar o afogamento entre livros: Roberto Calasso e as bibliotecas

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Por Mary Carmen Sánchez Ambriz Roberto Calasso. Foto: Enrica Scalfari Nadar entre os livros   Acumular livros não é o mesmo que possuir uma biblioteca. Um conhecido retrato do fotógrafo Rogelio Cuéllar captura José Emilio Pacheco (1939-2014) em sua biblioteca pessoal. Os livros não estão apenas nas estantes e na escrivaninha; há também volumes empilhados ao seu redor que inclusive chegam a cobrir (ou emparedar) parcialmente uma janela. Parece um redemoinho livresco. Como quem está no seu interior, sem medo do naufrágio iminente entre papéis e letras, o escritor olha para a câmera com serenidade.   Essa paisagem descreve muito bem o ambiente de onde surgia a coluna “Inventário”. Num tempo posterior à Enciclopédia Britânica (que Borges tanto elogiou), mas anterior à Wikipédia, Pacheco nadava entre os livros durante dias ou semanas para configurar textos que pareciam concentrar tudo em torno dos temas escolhidos, geralmente questões sociais ou políticas atuais, ou, ainda, o que e...

Truman Capote ou como acabar de uma vez por todos com seu talento

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Por Iker Zabala   “Ah, sim, penso muito no suicídio. E conheço algumas pessoas que tenho certeza de que ainda vão se suicidar. Truman Capote, por exemplo”. Yukio Mishima, citado por Truman Capote em Música para camaleões . Truman Capote. Foto: Irving Penn   Ao contrário de Yukio Mishima, Truman Capote não planejou o seu suicídio como uma cerimônia de profundo significado diante do olhar atônito do mundo; também não infligiu a si mesmo a morte de forma rápida e quase indolor, depois de uma vida infeliz de arrivismo, ambição, fracasso e culpa, como fez a sua própria mãe. O processo de autodestruição física (e literária) de Capote foi muito mais sutil, lento e implacável.   O escritor estadunidense se propôs desde criança a ser um autor de sucesso, rico e famoso, e com apenas vinte e três anos conseguiu colocar por escrito com um estilo prodigioso e precoce os segredos de sua alma dolorida: seu primeiro romance foi um colossal trabalho de juventude, delineado graças ao tal...

Cinco poemas do romantismo inglês — pela pena dos seus mais celebrados artífices¹

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  Por Pedro Belo Clara     Joseph Arthur Palliser Severn. Landscape with Distant Mountains, 1899.   GEADA À MEIA-NOITE 2 (S. T. Coleridge, 1772 - 1834)   A Geada executa o seu secreto ministério, Sem auxílio de qualquer vento. O grito da corujinha Alto soa — e, escutem!, de novo, tão alto quanto antes. Os hóspedes da minha cottage , já em repouso, Deixaram-me à mercê dessa solidão que propicia Abstrusos devaneios: isto exceptuando, a meu lado Meu filho em seu berço tranquilo adormece. Tão sereno! De modo tal que perturba E vexa a meditação com o seu invulgar E completo silêncio. Mar, colina e madeira, Esta vila populosa! Mar, colina e madeira, Com todos os incontáveis eventos da existência, Inaudíveis como sonhos! A fina chama azul Do fogo ardendo lento permanece e não se agita; Apenas essa película, palpitando na grade,   Palpita ainda, o único elemento inquieto. Creio que os seus movimentos, nesta quietude natural, Concedem-lhe obscuras simpatias para c...

Boletim Letras 360º #606

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Armando Freitas Filho   LANÇAMENTOS   O último livro deixado por Armando Freitas Filho .   Com maestria e absoluta sensibilidade, o autor revisita os temas que lhe são caros — o ofício da poesia, o Rio de Janeiro, a passagem do tempo, o amor, o desejo e a finitude. Ver, escrever, ler, reler. À máquina, à mão, ou a lápis, no computador. De pé, com pressa, no tumulto do dia, com caneta emprestada. Ou então sentado, à noite, no silêncio da casa. Poema fresco, novíssimo, rasurado, que se escreve enquanto o pensamento caminha. Poema impresso, na folha amarelada, guardado na estante, lembrado de cor, ou quem sabe esquecido, sem nenhum resquício do que o motivou. O poema, como se percebe neste livro, serve para ver melhor. Para reconhecer a própria casa, seus ruídos, sua mobília e seus moradores. Para decodificar a paisagem, enxergar o mar batendo na pedra e também para observar a precariedade e a beleza dos dias, o envelhecimento, o esquecimento, a suspensão e a linha do horiz...

Armando Freitas Filho, poeta do seu tempo

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Por Pedro Fernandes   “Mas como não sou prosador de ofício e sim poeta do meu tempo, sem odes e odisseias, minhas linhas são magras almejando ser graciliânicas em um dia excepcional qualquer.” Armando Freitas Filho. Foto: Ricardo Borges As aspas são de Armando Freitas Filho e estão num texto em que o poeta nascido no Rio de Janeiro a 18 de fevereiro de 1940 responde, diante de uma mesa em constante expansão de acúmulos, à pergunta “Preciso ou não arrumar minha mesa?” — título que integra o livro Só prosa (2022). As linhas magras, graciliânicas, compôs uma obra extensa e singular para a poesia. Nos vários registros que deixou, encontramos como recorrente, uma expressão miúda, contornada por uma timidez, e que se enraíza numa poesia cujo tempo se abriu para a dúvida ante a constância do sujeito e das coisas.   Nos registros de imagem, que também a partir da sua geração, encontrou o mesmo campo de importância e divide significação com os materiais verbais, é singular uma fotogr...