Postagens

A extensa sombra de um clássico

Imagem
Por Rodolfo Biscia Entre o pleno ser e o puro nada, que tipo de entidade é uma sombra? A essa pergunta platônica, Adelbert von Chamisso respondeu com uma fábula de moral imprecisa. Mercadoria intangível, quanto vale a sombra? Muito pouco, uma nulidade? Uma coisa parece clara: seu preço aumenta quando começamos a sentir a sua falta. Suplemento à nossa identidade, revela-se como predicado essencial assim que desaparece. Logo percebemos que a metafísica não era estranha a este escritor franco-alemão. Isto é demonstrado pelo pequeno romance magistral que publicou em 1814 e é confirmado pelos versos que o precedem.   Desde o primeiro capítulo, a história de Peter Schlemihl combina realismo burguês e uma imprevisibilidade fantástica. Chegando não se sabe de onde, o personagem desembarca em Hamburgo. Participa de uma reunião da abastada sociedade. Ali, um velho vestido de cinza, pouco demoníaco e bastante cortês, fornece magicamente os objetos de que essas figuras venais precisam. Do bols...

Walter Salles esqueceu de comprar a televisão

Imagem
Por Renildo Rene   Walter Salles revelou seu olhar vertiginoso sobre o nosso cenário político, mas esqueceu de encenar a compra da televisão realizada por Eunice Paiva, no início deste milênio, que confirmaria certas dimensões para pensar o ideal brasileiro pós 88. No novo filme do diretor, visitamos a família de Marcelo Rubens Paiva, em uma estrutura linear bem definida de tempo e espaço, após o seu desaparecimento orquestrado por militares brasileiros na década de 70.   Já na cena inicial, os créditos indicam a data e o contexto dos eventos que o espectador irá vislumbrar. Em seguida, uma restauração imagética da residência sempre bem ocupada por familiares, amigos e objetos que encenam a cultura popular daqueles anos. Veroca, Nalu, Eliana, Babiu e Cacareco, os filhos de Marcelo com Eunice, ganham presença por meio dessa vertigem da câmera de ocupar diferentes posições, movimentos, tamanhos, para ilustrar os dias como a união de muita gente, e com a felicidade que os une pre...

Marginália para Maria Gabriela Llansol

Imagem
Por Eduardo Galeno     “‘Vinde ler’ – diz Ana aos objectos…” M. G. Llansol, Um beijo dado mais tarde   “Idade Média: quando ler um texto era comentá-lo…” M. G. Llansol, Herbais, 26 de julho, 1981 Llansol em Herbais, Bélgica     Em Llansol, a poesia está em constante conversa com a prosa. Mas não chega a ser hibridismo. Não sei do que se trata propriamente, mas existe. A poesia como derramamento generalizado, não misto. Não forma, mas pureza. Os gêneros se fundem dentro do que ela coloca no estilo (no que ele conduz de completamente sinestésico, mas (i)limitado pela geometria, por um pensamento de corpo lógico ).   Spinoza diz, na parte XXXII das definições das afecções de sua Ética , sobre o desejo: enquanto desiderium :   “O desejo frustrado é o desejo ou apetite de possuir uma coisa, desejo que é mantido pela recordação dessa coisa e, ao mesmo tempo, entravado pela recordação de outras coisas que excluem a existência da coisa desejada.”   Ness...

Antonin Artaud e o “Bluff surrealista”

Imagem
Por Ricardo Echávarri Antonin Artaud. Foto: Man Ray. Quando for reescrita a história do Surrealismo — a vanguarda mais ousada e transcendente do século XX —, na sua parábola, deverão ser apontados os seus Hileg ou pontos axiais, de que falava Paracelso: aquelas adesões entusiásticas ou despedidas abruptas ao único ismo (herdeiro do “sol negro” do Romantismo) que se postulou como algo além do mero campo artístico, e levantou a bandeira da poesia, do amor e da liberdade, quase como uma nova concepção de vida.   Antonin Artaud ingressou no Círculo Surrealista em 1924, tendo acabado de publicar seu livro de poemas Tric Trac du Ciel . Dirigiu a Oficina de Pesquisa Surrealista e criou o Teatro Alfred Jarry, em homenagem ao inventor da Patafísica (ou “ciência das soluções imaginárias”) e grande inovador cênico. A passagem de Artaud pelo Círculo, apesar de brilhante, foi suficiente para delinear uma era civilizacional baseada no surrealismo: uma nova ordem passional que recuperaria para o...

Boletim Letras 360º #613

Imagem
Thomas Bernhard. Foto: Otto Breicha LANÇAMENTOS   Coletânea apresenta novas expressões da escrita de Thomas Bernhard .   “Tudo nele era revolta”: dessa maneira o poeta francês Rimbaud é definido por Thomas Bernhard no texto que abre a coletânea Na pista da verdade , escrito em 1954, quando o escritor tinha apenas 23 anos. Tais palavras tão categóricas podem muito bem se aplicar à carreira que o autor austríaco desenvolveu nas décadas seguintes. Afeito a polêmicas e controvérsias, ele escreveu uma sequência de peças de teatro que atacavam as cidades austríacas onde eram encenadas, assim como seus habitantes, muitas vezes sem poupar os próprios festivais de dramaturgia que as contratavam. Neste livro organizado por Wolfram Bayer, Raimund Fellinger e Martin Huber, podemos nos divertir com a chegada inesperada do autor à redação do jornal de Augsburgo, onde protestavam contra sua peça, quase como um happening . Mais importante que isso, podemos matizar o estilo de Bernhard atrav...

Ode ao passeio e ao caminhante: Baudelaire, Debord e a cidade

Imagem
Por Pilar R. Laguna Gustave Caillebotte. Rua parisiense, dia chuvoso   Existem dois tipos de pessoas, as que passeiam e as que não passeiam. A menos que uma causa importante os impeça, reconheço a minha profunda incompreensão em relação a estes últimos. Vaguear é uma atividade essencialmente humana, ou assim gosto de pensar, e quando não a praticamos é como se estivéssemos negando uma parte substancial da nossa essência. Não estou falando do deslocamento prático, estou falando da deambulação descontraída, aleatória e reflexiva que é quase uma prática mística e transformadora. Uma ferramenta para despertar a atenção, a criatividade e até rebeldia.   O passeio — em oposição ao ato de simplesmente caminhar — tem como premissa uma sede sem a qual é impossível ocorrer em todo o seu esplendor. Deve haver uma intenção transformadora no caminhante: o desejo de voltar um outro. Não tem nenhuma relação com rotinas ou deveres e é principalmente um exercício psicológico e de atenção — esp...