A caverna, de José Saramago

Por Pedro Fernandes


O escritor José Saramago durante o lançamento de A caverna no Brasil, em 2000. 


A caverna foi publicado em 2000. Vem, portanto, cercado por Todos os nomes (1997) e O homem duplicado (2002). É novamente um romance cuja narrativa traz o que a crítica literária tem chamado de fase da escrita de José Saramago que se volta para as questões em derredor do homem e do mundo contemporâneo, uma realidade fugidia, conforme bem assinalou o Comitê do Prêmio Nobel, em 1998, quando da comunicação do prêmio ao escritor.

Este é, talvez, o romance mais malquisto pela crítica. Este livro e o poemas O ano de 1993 (1975). O que, a meu ver, conjuga-se como um grande equívoco — nos dois casos. Todo escritor, é verdade, tem seus momentos mais felizes de criação e outros nem tanto. E, muito provavelmente, um bom escritor é também isso pelas obras ruins que escreveu. No mais, para ele, se a crítica quer-lhe mal é problema da crítica. Agora, eu, que sou apenas um pequeno leitor, prefiro ficar entres os que acreditam que o trabalho do criador deva ser respeitado e os problemas que existirem sobre uma obra específica não devem servir de rebaixamento da sua figura. O escritor é o escritor, a obra é a obra. 

No itinerário de leitura da obra de José Saramago esta foi a mais recente. Restam ainda muitos outros e espero ter fôlego de comentar um a um para os leitores deste blog. Esta, afinal, é uma tarefa ou mesmo missão de um leitor: falar das suas leituras para, quem sabe, formar em outros o interesse pelos livros que leu. E, antes mesmo de redigir melhor minha compreensão do que li, recomendo este A caverna porque é um romance que conversa com um tema relevante para o estágio civilizacional em que estamos: o estabelecimento do modelo de consumo silenciosamente (ou nem tanto) imposto pelo capitalismo. Ou se preferir: nossa entrada no capitalismo predatório.

É um romance com um enredo muito simples, mas com reflexões caras acerca do levante do capital e o massacre de nosso lugar enquanto humanos, visto que nessa conjuntura encontramo-nos reduzidos à condições diferentes de objetificação: somos ora o consumidor, ora o trabalhador, ora o refugo dessa ordem. É nesta obra em que melhor se revela certa posição marxista de José Saramago porque é uma crítica muito aberta sobre a perda da coletividade e consequentemente o aumento do individualismo e da subordinação do homem ao consumo pelo consumo. Parece-me o livro sobre a necessidade de nos rebelarmos contra a desumanização.


Capa da edição brasileira de A caverna.  


Trata-se de um retrato por aproximação do tão conhecido mito da caverna de Platão, passagem contida no Livro VII d'A República. No diálogo que Sócrates mantém com Glauco, o discípulo é suscitado a pensar sobre um grupo de pessoas radicadas numa grande caverna. As prisioneiras não percebem as demais ou apenas se percebem como projeções nas sombras lançadas às paredes até que uma delas descobre a possibilidade de liberdade. Uma vez liberta, regressa com o intuito de resgatar as que ficaram, sem sucesso. O arco narrativo é recuperado no romance de José Saramago, mas com o desfecho positivo em relação ao relato antigo.

O livro nasceu, segundo o próprio escritor em entrevistas da época, quando da sua viagem ao Brasil e do contato que manteve com artesãos do barro numa dessas feiras montadas para turista ver, no Rio de Janeiro. Nele, os habitantes dessa releitura a Saramago do referido mito, estão imersos noutra caverna, mais contemporânea e corriqueira, tão corriqueira que certamente todos nós, de uma forma ou de outra, estamos encerrados nela: o Centro Comercial, alçado aqui à posição de uma alegoria sobre os simulacros da vida urbana e individualizada.

O Centro Comercial nada mais é do que um shopping center atrelado a um condomínio desses de luxo e mostra como uma espécie de lugar voltado para um modo de vida totalmente contraposto ao que leva a família Algor, desde já, um dos melhores núcleos de personagem criado por José Saramago; porque tem um laço de aproximação tão maternal, tão humano, que no mundo de hoje, chega a parecer invenção da ficção. Esse contato com os Algor (e agora vou buscar um apelo familiar que talvez tenha me tocado tanto) lembrou-me muito de minha primeira infância e adolescência, do convívio com meus pais e avós na labuta no campo em proveito de satisfazer a ganância do mercado. Com os Algor, meus pais, que já tentaram de tudo um pouco para ganhar a vida, também tiveram de vender sua pequena produção (não de cerâmica) mais agrícola para a cidade e, em grande parte das vezes, o interesse dos compradores sempre esteve preso ao interesse do bom produto por um preço muito inferior ao trabalho de cultivo.

Mas, memórias pessoais à parte, Cipriano Algor é um artesão do barro que mantém laços comerciais com o Centro, até o dia em que as pessoas deixam de se interessar e de fazer uso dos artefatos de barro em troca por outros apresentados como mais sofisticados, modernos, duráveis, herdeiros do combustível-motor do mundo, o plástico. O fim das atividades na olaria dos Algor obriga, como muito é do conhecimento dos países que ainda padecem com os processos de urbanização, como é caso no Brasil, a família a se mudar para o tal Centro. Essa mudança é apenas possível porque Marçal, o genro de Cipriano, alcança uma mudança de patamar nas funções de vigilante nessa empresa.

É aqui que a narrativa aponta para outro dos processos do novo capital, além do consumo ou do modo de vida em que o homem é reduzido à sua força de trabalho para alimentar a grande máquina do sistema em curso: o modo de vida encerrado entre as paredes dos minúsculos apartamentos. No romance, o narrador evidencia como para muitos essa condição é desejada ou a ideal porque nela se encontra todas as possibilidades de ataviar os sentidos. 

Nesse percurso não se pode deixar de lado a presença de outra personagem que como aquela do livro brasileiro Vidas secas, de Graciliano Ramos (ou de Ensaio sobre a cegueira), é tão importante quanto o grupo de figuras de acabo de apontar: o cão Achado, protagonista por excelência dos fatos/ sentimentos de toda narrativa. É através dele que se infiltram as próprias identificações do autor implícito: na escolha e simpatia por Cipriano, por exemplo, ou em primeiro instante, na maneira arisca como trata Marçal em trajes de guarda.

Também por aproximação pode-se entender a ponto de dizer que o que Saramago quer com esse livro — o que sobressai como algo notável e comum a todos os outros romances do escritor (ao menos os que já li até agora) — é o entendimento por parte do leitor de que aquele mito de Platão nunca esteve tão em voga como contemporaneamente. Essa reflexão que me acompanhava enquanto lia o livro pude corroborar com uma fala do próprio escritor. Refiro-me ao documentário Janela da alma dos brasileiros João Jardim e Walter Carvalho que trata do tema da visão a partir do depoimento de dezenove personalidades que têm alguma forma de problema visual; além de José Saramago, estão nesse grupo nomes com o querido Manoel de Barros.

É na comum e simples cena de comportamento de criaturas alheadas, seduzidas pelo encontram no consumo, que notadamente marca os sujeitos diante das vitrines ou com futilidades outras por horas e horas nos shoppings centers, por exemplo, que José Saramago depura seu olhar, pela lente do mito da caverna de Platão, para o entendimento de sua tese, a da fragmentação ou virtualização da sociedade e dos sujeitos pelo consumismo.

Essa aparente simples constatação é fundamental para entender o livro e para entender a preocupação ideológica do escritor português. Se bem repararmos essa constatação em torno d'A caverna é algo que se aplica a outros romances do escritor, como o notadamente o referido Ensaio sobre a cegueira (a própria civilização), mas também Todos os nomes (a burocracia do registro civil) ou O homem duplicado (o indivíduo encalacrado na sua condição narcísica nesse mundo de reflexos). A grande crise pela qual passa a sociedade é a de se prender em valores que cada vez mais torna o homem distante daquilo que o define como ser humano.

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