Os cus de Judas, de António Lobo Antunes


Por Pedro Fernandes


Há livros que oferecem uma resistência natural antes mesmo de começarmos sua leitura. Em torno dessas resistências as questões são variadas. Quando se trata de um livro que marca o fim do trajeto literário de um escritor, por exemplo. Digo isso pensando no recém-lançado Claraboia, de José Saramago, que comecei e ainda não fui ao fim como se estivesse poupando-me daquele sentimento que me invade toda vez que entro numa livraria: a finitude. Nesse caso, porque sei que o escritor não está mais a escrever nenhum livro que noutras ocasiões me fazia ir a livraria para ficar à cata dos dias acompanhando a chegada da novidade. À espera, como de quem que amamos, que de longe escreve cartas para nos dar contas do que se passa por algures.

Outro modo de resistência é o próprio texto que nos oferece. Não quero citar pela milésima vez os livros que me obrigaram a vários recomeços até que eu estivesse totalmente certificado de que havia conseguido captar seu leitor. Sim, grandes livros têm seus próprios leitores: únicos, singulares. E, nesse caso cito Os cus de Judas, de António Lobo Antunes. Iniciei a leitura desse romance ainda na graduação, quando o livro, editado no Brasil pela Objetiva, apareceu na biblioteca na seção dos livros de José Saramago. Mas, somente iniciei. O movimento linguístico da obra foi mais forte que eu e não passei do primeiro capítulo, peculiarmente marcado como o capítulo A.

Depois, fui ser professor de Literatura Portuguesa III e, no galope desse curso, é indispensável que os alunos tenham contato com a obra de escritores do porte de António Lobo Antunes. Li ainda antes do início do curso: era um dos poucos livros que indicaria aos alunos e que ainda não havia lido. Alunos, aliás, que sempre chegariam para mim a se queixarem que a narrativa era difícil: o leitor destreinado enrosca-se nas palavras e perde-se facilmente no ritmo do diafragma textual. 

Sim, é verdade, a narrativa de Os cus de Judas é exemplo claro do curto frágil limite que separa a linguagem da poesia da linguagem da prosa. Isso será a primeira coisa que me fascina nesse escritor. Também o modo apressado de narrar numa clara tentativa de aproximação do fôlego da oralidade, típica, que eu já dominava da leitura da obra de José Saramago. Aqui está algo que pensei não encontrar em nenhum outro escritor, mas que me deparo com António Lobo Antunes e seu enovelamento de palavras. Elas se combinam de uma maneira que, ao primeiro alcance, é caos e desastroso, mas no dobrar da esquina, a coisa se ajusta e o que se preserva é uma tensão natural.

Chamou-me atenção, de imediato, esse título: Os cus de Judas. O sintagma escatológico (ao menos para um leitor brasileiro) que só se esclarece no correr do romance e que é fruto de duas expressões portuguesas que quer dizer fim do mundo ou lugar inóspito: o cu do mundo — o lugar onde Judas perdeu as botas. Afinal, o espaço físico pelo qual transitará protagonista e depois a memória do narrador está situado em algures na Angola nos anos terríveis de guerra colonial. Embora, seja constantemente nomeado os lugares físicos, não se situa o narrador em nenhum deles especificamente.

Depois, também fiquei a saber que Os cus de Judas integra uma trilogia (involuntária talvez?) que foi escrita quando o escritor voltou da guerra colonial em Angola; além deste, também os romances Memória de elefante e Conhecimento do inferno tratam dos dilemas resultados do trauma de um tempo em que um governo sustentava com a vida do próprio povo a ilusão de um império há muito perdido.

António Lobo Antunes é formado em Medicina e embarcou para os campos de batalha na África, como muitos portugueses de seu tempo: empurrados ou seduzidos pelo discurso da propaganda do Estado. A guerra colonial em África integra, dentro das recorrências na literatura portuguesa contemporânea, tema-chave; muitos dos escritores, a partir de ou depois de António Lobo Antunes, terão tocado direta ou indiretamente nas suas narrativas. Está mesmo em José Saramago, escritor que não tratou da experiência; no Levantado do chão, por exemplo, a chegada da liberdade com a Revolução dos Cravos é sentida, na distância dos restritos sentidos dos camponeses alentejanos como um novo tempo para os países que viviam sob o jugo português — um exemplo que contradiz o que já ouvi, não uma, mas várias vezes, de que a obra do escritor Prêmio Nobel de Literatura representou um tipo de literatura que está ao lado do colonizador, ponto de vista este do qual discordo completamente. Ou ainda em romances como o A costa dos murmúrios, de Lídia Jorge.

O ponto de vista de quem narra é o grande diferencial em Os cus de Judas. A voz é de alguém que esteve no epicentro do confronto e que foi ele próprio parte da experiência do grande drama, das tragédias e das atrocidades do campo de batalha. É um romance, portanto, que pode beirar ao autobiográfico, se pensarmos na máxima flaubertiana Emma Bovary c'est moi. A história é narrada por um médico alferes, recém-chegado de Angola, que, num encontro casual com uma mulher não identificada, numa longa noite, entre doses e doses de conhaque, conversa sobre o vivido em terras africanas. Incorporam-se nessa fala o comezinho da tropa, mas impera, sobretudo, o absurdo do conflito, as dores da personagem e sua impotência frente ao absurdo.  

O dilaceramento da família, a redução do homem aos seus afetos mais baixos, a sua submissão às maiores extravagâncias para sentir, permanecer ou driblar a morte, perigo constante numa guerra, é isso que perpassa a voz do narrador. O tom ácido com que ele vai narrando os fatos, constantemente permeado pelo anedótico, compreende um estágio de consciência perturbada, que pouco tem certeza de si. Consciência saída de uma oficina do horror e que apesar de ser seu foco olhar para a guerra colonial em Angola, não se situa, em momento algum, numa questão única, mas avalia simultaneamente três momentos distintos de sua existência: o tempo antes de sua ida à guerra, o tempo da guerra e o pós-guerra, tudo, numa fusão que não se separa, no desenvolvimento do discurso, um do outro. 

Estando diante de um tecido de memória — e nas circunstâncias que já delineamos — é natural que o narrador necessita mover-se com maior desenvoltura, e está o processo de fusão temporal, processo esse que conduz o leitor a uma percepção clara do autêntico encadeamento dos acontecimentos. Em Os cus de Judas os acontecimentos são derivações, como se por metástase; é esse movimento que faz o leitor reviver a dinâmica da própria história narrada.

É um arquivo de memória que, ao ser aberto, está lá exposto, na sua totalidade, o que foi, de verdade, aquele período lido pela história oficial como glorioso para o povo português. Não será à toa, portanto, essa nomeação dos capítulos por letras do alfabeto, como a indicar para o leitor fichas marcadas de um arquivo: a crueldade da guerra, os desafetos, a luta pela sobrevivência, os mandos e desmandos, o dia-a-dia da tropa, o desejo do retorno, os medos, as angústias, os individualismos, as perdas do corpo, da memória, das vidas, o esfacelamento do sujeito e seu conflito interno de si para si e de si para com o lugar da pátria. 

Enfim, o leitor está diante de um texto que é representativo não apenas porque recupera o horror dos conflitos impostos pela ânsia de mandar ou vã cobiça; Os cus de Judas é o retrato do horror de quaisquer guerras ou conflitos em qualquer parte do mundo, e daí, entenderão, o porquê de um título no plural — os cus de. Ignorem a complexidade — outras obras de António Lobo Antunes são até mais desafiadoras — e desfrutem de um dos livros que melhor nos conduzem pelo grande inferno que é o de toda guerra ou dos mundos que foram atravessados por seus traumas. 

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