Easy Rider, Trainspointting, On The Road e nosso artificialismo moral e existencial
Por Rafael Kafka
Impossível
assistir a filmes como Trainspoitting e
Easy Rider sem pensar na busca
desesperada à qual muitos se engajam dentro de nossa sociedade capitalista sem
obter resultados satisfatórios. O que fica evidente em ambas as produções é o
fato de que o vazio inerente à finitude da existência humana é intensificado por
um modelo socioeconômico preocupado tão somente em disfarçar a angústia do ser
por meio do ato de consumo, como bem expressou Bauman em seus ensaios sobre o
mal-estar da sociedade pós-moderna.
Sartre e outros existencialistas dizem que somos condenados a sermos
livres. Todavia, os discursos de nossa sociedade assumem muitas vezes um viés
ditatorial, sem muito espaço para a real livre escolha. Cada vez mais isso se
evidencia em um discurso conservador desavergonhado, o qual se mostra de forma
sutil e grotesca no filme dirigido por Denis Hopper. A nossa angústia é
dirigida para um modelo inautêntico de existência marcado pela aparência. Neste
contexto, surge o chamado modo americano de vida que em realidade é o próprio
modo de existência da realidade capitalista, mas que foi vendido como a face do
meio social estadunidense.
Numa realidade em constante mudança e na qual os desejos nunca bastam
para uma satisfação mais plena, o sujeito encontra estabilidade de ser na forma
de certos discursos e instituições. Ter uma família, um carro, um emprego
estável e uma casa bastam para vivermos em paz conosco mesmos. O discurso
conservador mais do que defender uma ordem social que lhe soa segura busca
também garantir que esta ordem se torne existencialmente necessária. Alguns
seres, muitos poderíamos dizer, acabam procurando formas de fugir dessa
condição, mesmo que não haja uma clara consciência da profundidade
socioeconômica da mesma.
A arte é cheia de exemplos de indivíduos os quais buscam transcender a
simples aparência da estabilidade rumo a uma condição mais plena de ser e
sentir a realidade. Na literatura do século XX, o movimento Beat é o que mais
se aproxima dessa meta, em especial na figura de Jack Kerouac e seu On The Road. A personagem central do
romance, Sal, é bastante problemática, pois se revela uma pessoa capaz de
questionar os modelos de existência e de se fazer literatura buscando formas
mais plenas de viver e sentir o mundo real. Todavia, em nenhum momento, parece
haver nele uma clara noção da raiz do problema da artificialidade enquanto algo
ligado às bases da própria sociedade capitalista neoliberal.
O mesmo ocorre em Trainspointting. Mark Renton e seus
demais amigos são exemplos de pessoas que se utilizam das drogas como forma de
transcender a simples linearidade da existência. O longa dirigido por Danny
Boyle é coloridamente perturbador por mostrar em forma de sinfonia os problemas
ligados ao vício das drogas e as recorrentes idas e vindas em direção ao vício.
Mark percebe que caiu em uma rede de dependência que o leva a cometer crimes e
a viver de forma destrutiva, mas decidir-se a abandonar o vício é viver
novamente a realidade insípida por ele descrita no começo da história.
Tal realidade é disfarçada de
livre escolha. São listadas então uma série de “possíveis” escolhas que criam o
desenho perfeito da condição do homem médio afundado no sofá da sala, bebendo,
vendo esportes na televisão, com uma esposa e filhos que perturbam seu desejo
de solidão. Ao final do filme, vemos Mark indo em direção a tais “escolhas” com
ar tranquilo, cansado das viagens da droga, rendido ao mundo conservador do
qual tanto tentara fugir.
Ao olharmos tal cena logo nos
lembramos do parágrafo final de On The
Road, com Sal Paradise renegando o amigo Dean Moriarty, não aceitando um
novo convite para pegar a estrada. Durante o romance contemplamos a depuração
de uma busca poética de Sal por uma nova condição existencial cuja energia é
catalisada pela presença de Dean. Esta depuração faz com que o sentimento de
empolgação presente no começo das jornadas de Sal e Dean, profundamente
marcadas por um sentimento edipiano de irmandade, torne-se uma profunda
decepção para com o amigo das ruas, que no começo era visto como uma espécie de
santo e agora é considerado como um homem louco e irresponsável. Sal tentou
fugir da condição conservadora da fase adulta de sua existência, mas sem
entender as bases morais e sociais dela. Ao final, cansado de procurar um outro
caminho dentro do campo poético, entrega-se -ou menos tenta – ao desejo de viver
a estabilidade de uma vida comportada em troca das constantes fugas pelas
estradas em busca de algo mais.
De forma mais poética e mais
resoluta, Easy Rider transmite o
mesmo desejo de vida profunda e autêntica. Wyatt e Billy são uma espécie de Sal
e Dean mais maduros. Assim como Mark Renton, veem nas drogas uma possibilidade
de transgredir não apenas sensorialmente a realidade social na qual vivem, mas
também a própria moral de uma sociedade conservadora que impede as próprias
sensações de serem livres. Ao contrário de Tranispointting,
feito na década de noventa e focado nos espaços fechados das grandes cidades –
transmitindo assim um profundo sentimento de enclausuramento – Easy Rider se utiliza por demais da
música e das tomadas do deserto para falar mostrar o desejo de expansão do
olhar presente nos dois personagens.
Feito na época do auge dos
movimentos contraculturais, os quais muito de inspiração tiveram na geração
beat, Easy Rider exibe a viagem de
Wyatt e Billy rumo a uma festa carnavalesca na qual eles esperam encontrar algo
que não viam em suas realidades cotidianas, que por sinal são ignoradas em todo
o filme. Sabemos apenas que ambos vieram de Los Angeles e querem chegar a tal
festa na esperança de obterem algum tipo de redenção.
Interessante repensar aqui a
significação do carnaval para certos autores como Bakhtin, que mostra em sua
obra sobre Dostoiévski como o discurso carnavalesco é uma mescla de diversos
fatores humanos. O grotesco e o belo, o drama e a comédia se misturam dentro do
carnaval e do espaço da praça pública quebrando desde o plano formal a lógica
aparentemente sistêmica e homogênea de uma sociedade baseada em valores de
estabilidade existencial.
Porém, assim como Sal e Mark
Renton, ao chegarem ao destino, os dois amigos se deparam com o vazio
existencial típico de nossa finitude, sem saber ao certo que rumo tomar a
partir dali. Somos levados a entender que somente o movimento constante mantém
o ser humano salvo de sua angústia, pois é somente deste modo que o sujeito
adquire novas formas de ver e sentir o real, não se afundando no tédio e no
desespero de perceber que tudo é um ciclo com culminância na morte.
Interessante que dentro do filme
há a presença de um sujeito por si só bastante carnavalesco: George Hansen,
interpretado por Jack Nicholson, é um paradoxo. Advogado com grande poder de
influência, capaz de barganhar a própria liberdade com os guardas da cidade
onde se encontra preso, Hansen decide acompanhar a dupla de amigos como forma
de se libertar ainda mais das amarras que buscam frear o seu jeito tresloucado.
Juntos, vivem talvez a cena mais icônica do filme inteiro, quando em um bar são
alvos dos olhares ferozes de sujeito do interior norte-americano os quais,
entre dentes, expressam seu ódio por aqueles rapazes de aparência desleixada e
em constante desejo por liberdade.
Pouco antes de seu fim, George
fala do choque causado por Wyatt e Billy, um choque causado pelo fato de eles
serem livres e a liberdade ser algo que causa pavor, asco. Mesmo vivendo em uma
sociedade a qual se utiliza constantemente do discurso da liberdade para vender
a si mesma como algo melhor do que as utopias socialistas, nas quais todos
seriam, em tese, doutrinados ideologicamente, ser livre plenamente, não
confundindo tal conceito simplesmente com a possibilidade de compra e venda de
produtos, é algo que causa choque e revolta nos seres presos em suas rotinas
massacrantes.
Não à toa, os amigos acabam
pagando com a própria vida pelo seu atrevimento em serem livres. Após uma
emboscada na qual perdem George, ambos chegam ao destino final de sua viagem,
mas sentem, após a festa, uma estranha sensação de vazia cuja explicação
poderia ser justamente a contraposição do sonho rebelde dos dois homens com a
realidade opressora que se esconde além dos desertos. O sonho de liberdade
deles é uma fuga tão somente, não havendo poder para uma mudança na qual as
pessoas começassem realmente a serem livres, poéticas, plenas em seu sentir e
viver. Há aqui uma depuração assim como houve com Sal, com a diferença contudo
que a de Sal se baseia na autodestruição de Dean, cada vez mais afundado em
suas querelas fraternais e pessoais. Wyatt, em especial, e Billy entendem a
força opressora da ordem social da qual fazem parte e sentem algo similar a
náusea, antes de também entrarem em contato com a morte.
Percorrendo uma nova estrada em
suas motos, Billy e Wyatt são mortos por dois fazendeiros simplórios, medianos
seres de boa conduta e bons pais de família, provavelmente, os quais decidem em
uma simples brincadeira mórbida ferir de morte os dois protagonistas. O fim do
filme com a moto de Wyatt destruída e pegando foco, com o plano da cena se
abrindo em expansão mostra de forma clara a pequenez de nosso ser diante de um
mundo congelado em seus conceitos os quais não aceitem o menor questionamento,
mesmo que este venha tão somente no plano forma de poesia e de atos, como andar
de moto ao som de rock ‘n’ roll pelos desertos e interiores dos Estados Unidos.
O conservadorismo em seu desejo de manter uma união estável dos fatos percebidos
mata quaisquer objetos e seres os quais busquem romper o seu modo de ver o
mundo real.
Sal, Mark, Wyatt e Billy não
conseguiram achar na arte a consolação que segundo Benedito Nunes é mais capaz
de dar ao ser humano. Somente a utopia marxista com sua meta de gerar um modo
de ser no qual a realidade coincida plenamente com o pensamento, na qual o agir
e o pensar estão em consonância para a liberdade humana plena, coletiva e
individual poderia servir de consolo no processo de entendimento da artificialidade
capitalista neoliberal. Mas diante dos massacres causados em nome dessa
ideologia no século XX, há um certo sentimento de desilusão amplificado que
parece nos condenar a vagar, como os seres mencionados aqui, em busca de uma
forma mais plena de sentir sem saber ao certo como romper esse ciclo de
artificialidade que insiste em rondar nossas existências.
Comentários