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| Joseph Beuys. Hasengrab, 1964/1979. Art Gallery of Ontario. | 
 
Rumores
 
1. Digamos que não é no imediato,
fundado à risca por uma visualidade pura, que o rumor é feito. Digamos que seja
um deslocamento simples, mas preciso. Portanto, poderíamos dizer, ou supor, que
a linha percorrida por ele, o rumor, dispõe de habilidades, técnicas e modos. 
 
2. [para ser redundante aqui] É
por isso que o dispositivo do rumor não pode ser uma singularidade, “una”; ele
remete a vários índices de partes que podem ser desiguais. 
 
3. Nesse sentido, o rumor treme,
vacila, gagueja. Há 
rumores.
 
4. Os rumores são, em
contrapartida à 
forma, aqueles suntuosos elementos de deflagração de 
senso,
se revoltando contra esse Deus exigente e sua maneira de ser que modulam as
aparências do mundo (da 
infralinguagem: o mundo da linguagem dentro de
si). Eles — rasgões da língua — abjuram das certezas de sua origem, ratificam
uma cautela desinteressada. Essa cautela, porém, não é uma renegação; o seu ‘sentido’
é esclarecido num outro (ambivalente). 
 
5. A sensação principal dos
rumores é, assim, a deferência da utopia com a 
hecceidade (
extralinguisticamente,
no mesmo momento em que se vê detida a uma ponta, e uma ponta invisível
[u-topia], também se declara e compreende a si, verificando seu 
ipse).
 
6. Os rumores são mais que
utópicos: heterotópicos. 
 
7. O que cai entre a divisa entre
o estilo e a língua pula a sintagmática e a paradigmática num esforço a mais.
Dessa forma, diria que, como função, o rumor alarga e achata. 
 
8. Por lógica, os rumores só podem
acabar brincando com a ideia de sujeitos e objetos, pensamentos e realidades. 
 
9. Nesse modo, o 
Absoluto
se entrega, o 
A gente se modifica drasticamente e assola a substância
tanto da nuance estilística quanto da mensagem linguageira. Há uma explosão, um
êxtase no interior da máquina. Nada pode impedir isso. 
 
10. A obtusidade pela qual a
marcha da voz da máquina passa resulta na intromissão a um acesso magnânimo —
excedido — às vias do ruído. Como um sinal de rádio que não sintoniza, mas que
tem todas as estações à espera.
 
Fe(i)tiches
 
1. A cisma de um fe(i)tiche dispõe
naquilo que a desconstrução latouriana plantava de fato + fetiche, quer dizer,
o 
faitiche é objeto-feito adicionado ao objeto-fada (ou, mais certeiro e
melhor dito, aos fatos rumo aos ditos, 
em conversa com). 
 
2. O surgimento de uma terceira
posição não apenas modifica o diapasão de a) pensamento e de b) realidade, mas
condiciona para que novas pontes surjam e, quem sabe, superem tanto a 
res
cogitans quanto a 
res extensa (o caso dos remendos e das
restaurações após a prática da iconoclastia). 
 
3. À baila, trazendo real e
artificial, não há separação. Real ou artificial? Os dois. 
 
4. Na combinação, um 
artefato
é transportado a partir do seu próprio remodelamento (autoprodução: 
autopoiesis). Onde está
a linguagem, então, que serve de aparato para o aparelho do material objetivo?
A linguagem mesma se confunde com seu fim. 
 
5. A passagem do ser ao pensante
corresponde exatamente à implicância na esfera do feitiço como autônomo. O
fetichismo, que não pode ser autônomo, 
sofre autonomia. 
 
6. 
Exemplum:
  assim que a multitude dos sonhos e do
imaginário (campo amplo) assola nos estratos e estratificações. 
 
7. O pavor e a transferência estão
ali na fronteira da fabricação e da imagem. Faz-fazer: faz-falar.
 
8. A dificuldade por uma permissão
nos nossos tempos à síntese entre signo e corporeidade é apenas aparente. Nas
obras dos artistas, você pode ver difundido todo o maneirismo de “sou carregado
por eles”. 
 
9. Sou carregado, portanto, e me
encarrego de afirmar a vitória do fato, mas igualmente do fetiche. 
 
10. Isso não me faz ficar obscuro;
a claridade de um feixe de elétrons no laboratório produz tanta lucidez quanto
os raios de Iansã no terreiro.
 
***
 
Presumo que tanto o rumor da
língua como o fe(i)tiche objetal se caracterizam na navegação entre os planos
de imanência e transcendência. Um lado que desobstrui o caminho nos aspectos
desse tema é a facilidade que podemos ter ao analisar alguns pontos de
referência cultural e/ ou artístico. Se, por isso, a minha leitura se revela
anacrônica, é justamente por ser a intenção. Os anacronismos são resultantes de
um escândalo antropossemiótico que configura a ação dos ruídos e dos semas nos
toques da linguagem (ou fora dela). 
 
Não se trata de desenhar uma
arqueologia, mas de emoldurar esses espaços limítrofes. A quimera que se
desenvolve no recinto da arte (da crítica, mais precisamente) é da exclusão da 
temporalidade
em contraste. O gesto de resgatar maneiras persiste através dos resíduos de
matérias artístico-culturais, dos próprios avanços criativos. Embora eles quase
nunca perguntem a si — porque, afinal, não têm sequer esse dever —, podemos nos
perguntar: em que ponto as artes (na linha da criação), ou atos de arte, são
assimétricos?
 
Eu tenho uma resposta: elas não
são. E de maneira alguma.
 
A simetria prolonga a ideia de que
não há disparidade nem hierarquia. Hoje, somos simétricos menos pela formação
do algoritmo totalizante do que pela fortuna natural do “desenvolvimento” — vai
essa palavra na falta de outra melhor — das artes. Diria até que a
responsabilidade da combinação está na superfície de toda a história cultural:
indo da poesia de Horácio e a festança ctônica romana a Warhol e a
generalização midiática nos Estados Unidos após a II Guerra.
 
Em qual lugar quero pousar, então?
 
Nesse: nenhum gênero existe sem
que tenha sido de outro [gênero]. Quero notar aqui que o paralelismo não é uma
analogia, como se fosse uma metáfora, mas um processo real em que se instalam
processos emergentes nos signos culturais e artísticos. Constituindo uma 
compreensão
formal da cultura/ arte, essa explicação — no ato de formalizar — destitui a
separação e torna possível e visível a reconciliação nos trâmites de objetos
que nunca foram 
relacionados anteriormente. 
 
Mas avancemos: onde isso se revela
com a minha leitura sobre os rumores e os fe(i)tiches?
 
Fazendo parte do meu cotidiano de
leitura, que não está nem na corrente letrada da literatura (gráfica) nem no
pressuposto intelectual de pesquisa (saber), acredito e sustento que existe um 
estímulo
que reage 
igual em relação a algumas poéticas diferentes entre si, como no caso
do canto dos nhambiquara, de um lado, e o álbum de 2018 de Jan Jelinek, do
outro. É um assunto que não deve ser explicado só 
racionalmente. Apenas
sentido por um estímulo, estímulo conceituado.
 
Esse auxílio da intuição e da
reflexão apresenta para mim um dos motivos contidos na força que impera em
poéticas que não estão voltadas à ditadura da palavra. Me faz questionar se,
caso a palavra seja uma insígnia incontornável da verdade, ela só pode, no caso
da distorção no canto do povo nhambiquara¹, ser sustentável em nível de
abstração (num marco em que a palavra se torna 
voz). É para isso que, aliás, a
incorporação do 
glitch de Jelinek em 
Zwischen², nessas aberturas
retóricas, influi no outro ponto.
 
Quando Lévi-Strauss, em 1955,
apresentou ao mundo, através da sociologia de campo, que a 
eidética do
homem “natural” — o homem primitivo — não é anterior nem exterior à sociedade,
que os nhambiquara, as flautas dos nhambiquara vistas por ele uma vez eram um
cromatismo provindo de madeiras 
mal esculpidas, Lévi-Strauss nos sugeriu
um apontamento peculiar e que cabe no texto: os povos extramodernos, numa voz 
extramoderna,
fazem fábulas — assim como nós, modernos! Como esse empenho aparece longe
temporalmente, o que restou foi seu rastro: um diálogo com vozes distorcidas,
falhadas, é uma ponte cultural. Assim que percebo ao ouvir seu 
som.
 
Em 
Zwischen, também há
história, há conto. Principalmente: há poesia. A sonoridade com que Jelinek
induz ao criar um trabalho de esquecimento semântico, por meio do qual a
tentativa de exagerar na informação é retida, produz uma exigência construtiva
de narração. Lady Gaga, Marcel Duchamp, Yoko Ono, Slavoj Žižek: eles tanto
combinam os lugares como disjuntam. As manhas comunicativas ressoam no cosmos
de uma linguagem em declínio, pobre, mínima. O quadro do álbum é fantástico e,
parece, se inclina àquela máxima beckettiana: 
quanto pior, melhor. 
 
Nos 
glitches, a voz
onomatopaica é 
desnaturalizada. Quem faz dessa virtualidade uma
progressão é a voz que, exalando um não-sentido, exala uma fábrica de imagens. 
Idolatria.
Penso: os rumores dessas falas cortadas de uma peça radiofônica são os mesmos
rumores que estão no jogo do diálogo dos nhambiquara: sem a posse plena da 
palavra,
eles têm a posse total da linguagem (mesmo como escape). Isso é confuso, mas
acontece.
 
Como fetichistas, são fáticos.
Como fáticos, são fetichistas. A arte, no Brasil não-moderno ou na Alemanha
moderna, é um fe(i)tiche. Ela se apaixona nessa fabricação de discurso (dizer),
nessa fabricação de verdade (fazer). Quando digo, estou fazendo; quando faço,
estou dizendo. É por essas e outras que, saindo pela tangente ao relativismo,
apoiar a simetria é apoiar o que há de 
encarnado em cada comunidade, dos
índios aos pós-serialistas. Um deus encarnado — a voz que pertence a mim, a
você, a ele — é o deus que nos faz. Toda condição de cultura consiste numa
condição de criação.
 
Suponho que a questão entre
Cultura e Natureza, que se encontra no cerne do binário rumor-fe(i)tiche, é
elementar na seguinte demanda: na detecção das origens (locais) que levaram
desvantagens por um motivo historial. Homens modernos e não-modernos recebem a
mesma chance para dizer e fazer, cujo plano comum, apesar das diferenças,
persiste em todas as circunstâncias. 
 
Essa leitura se baseou nos
textos de Barthes e Latour. Essa leitura tem a intenção de dar condições às
poéticas da não-palavra e necessitou da ajuda da agrafia dos nativos e do
universalismo eletrônico. 
 
Notas
 
1 
Dialogue of voice distorters
pode ser ouvida 
aqui.
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