Fim, de Fernanda Torres

Por Sérgio Linard

Fernanda Torres. Foto: Gareth Cattermole


 
Tivesse este romance caído nas mãos do tribunal de cancelamento das redes sociais, é bem possível que a campanha de Fernanda Torres, a atriz, fosse prejudicada fortemente por aquilo que escreveu Fernanda Torres, a autora. Não pela falta de qualidade da narrativa e sim pela grande presença de personagens questionáveis, de caráter duvidoso, de tendências machistas, misóginas e, em algum nível — maior ou menor —, preconceituosas. Isso ocorreria porque este mesmo tribunal exibe grande dificuldade de compreender a distinção entre personagens criados para um objetivo específico da obra literária e a vida do próprio ser humano que escreve. Um erro que faz com que escritores se aproveitem para reclamar uma autoridade irretocável e que tem resultado no afastamento de um público leitor cada vez mais diminuto.
 
Em Fim, Fernanda Torres explora o exato problema dos finais de personagens ou de figuras médias de um Rio de Janeiro dos bon vivant permanentes ainda no tempo contemporâneo. A obra não recorre a aspectos de um saudosismo ou de uma melancolia social de cunho realista que muito agrada ao público brasileiro, inclusive a este que aqui escreve. Na verdade, a autora, de forma hábil, deixa nítida a sensação do fim para as vidas e para as situações daqueles arquétipos que parecem nunca terem deixado de existir.
 
Do homem que troca a mulher com quem sempre viveu por uma mais jovem ou do amigo que finge preocupar-se com os demais colegas apenas para manter as aparências, tem-se uma grande quantidade de lugares-comuns explorados de forma não linear, cujo resultado já se anuncia no título: o fim incontornável. Desde as primeiras linhas das histórias, já se sabe, sem dúvidas muito cabíveis, quais os finais serão encontrados, mas a obra de Torres convida o leitor a fazer o caminho de consideração muito similar ao que Italo Calvino costuma traçar em seus romances: o de adentrar no rastro do “como” isso acontecerá. A obra deixa claro, inclusive, que houve estudo, especialmente estético, por parte da autora para a construção de sua narrativa. Algo que pode ser básico, mas em um sistema literário que parece justificar-se eternamente pela ideia da inspiração, encontrar o fruto de um árduo trabalho, construído com a seriedade necessária, é motivo de elogio.
 
Não se elogia este fim apenas pela qualidade inventiva com uma estética curiosa e bem articulada. A história é também divertida, envolvente e engraçada com tons de ironia que remetem aos bons momentos de textos machadianos, salvas as devidas proporções. A verve de uma comédia feita com a requerida seriedade é o que envolve a história destes homens que dão nome aos capítulos de Fim e que instigam no leitor a vontade de entrar nessa estrada da qual a saída já se conhece.
 
Álvaro, Sílvio, Ribeiro, Neto e Ciro são os personagens que encabeçam as partes principais do romance; cada um com suas datas de falecimento anunciadas assim que chegamos na página dos capítulos com seus nomes. A vida boemia, engraçada e safada deles destrincha-se sob o comando de uma pena que nada, exatamente nada, tem a esconder; está tudo às claras, os pensamentos mais obscuros ou os impulsos mais questionáveis aparecem na superfície textual com toda a clareza de uma manhã de sol forte em qualquer praia carioca. As saudades que podem ser lidas são as dos personagens que, no momento da narrativa, reclamam do envelhecimento ou demonstram um sentimento de falta do período em que a juventude lhes fazia companhia. Mas não de forma saudosa, como falamos, no máximo de modo reflexivo para em seguida apresentar percepções que podem ser lidas como legítimos deboches da vida em si.
 
“Decidi, ali, abandonar de vez o manual do bom comportamento, que te impede de comer o amigo, a mulher do amigo, a mãe e o pai do amigo. Uns cornos mansos que desconhecem o deleite da amoralidade”
 
Essa é a tônica do romance. Estes homens velhos — como são elencados — apresentam-se como o resultado de uma construção em que aquela que escreve explora a incontornável corruptibilidade humana que, cedo ou tarde, adentrará a vida de todos. Mas sem um necessário peso julgador sobre isso. Com a pena da galhofa, exploram-se homens que cansados do “bom comportamento”, decidem abandoná-lo ou, em um caso específico, quando alguém cansado do “mau comportamento” subverte o que pensa a maioria e mostra-se resignado à situação em que tudo fora perdido, inclusive a vida.



A não linearidade da história e a grande quantidade de personagens secundários que se cruzam a cada capítulo, como esposas, ex-amantes e um padre, ajudam a compor e trazer alguma complexidade de leitura para a narrativa. Não se trata, porém, de uma complexidade que precise mover o leitor a postular teorias ou segredos, como se uma história de suspense fosse.
 
Há de se considerar, ainda, que este romance, publicado em 2013, marca a estreia de Fernanda Torres na literatura e romances de estreia, por vezes, podem ser um complicador na vida de quem escreve. É uma aposta alta, mas que precisa —e que bom — ser feita, pois a nossa sofrida literatura necessita de algo novo para que os aparelhos permaneçam ligados.
 
Esse romance de linguagem comum, de um lugar-comum, de um final comum seria, pois, o suspiro necessário à literatura brasileira contemporânea? Passados doze anos de sua publicação, está claro que não. Contudo, ele está entre as obras que colaboram para a construção de uma literatura que se faz (ou se fazia) sem medo de seguir regras de um discurso agradável aos ouvidos e aos olhos de gregos e de troianos. Torres oferece um romance decente em que o conflito comum é desvelado de modo interessante e consistente, com algumas frases declaratórias, mas com um todo arquitetônico bem embasado.
 
“Até eu fiquei surpreso com a falácia, por que dissera aquilo? Por que a necessidade de romper dessa maneira com meus comparsas? Era ódio. Eu tinha ódio deles preferirem ser o que eu execrava. Nada de novo viria dali. Era o fim. Outro. De muitos”
 
Como se percebe no excerto acima, a obra não se dedica, então, à exploração de apenas um tipo de fim, embora seja o fim geral o mais produtivo e recorrente, pequenos fins diários e rotineiros são acrescentados à narrativa. Há espaço, assim, para que se indague sobre qual dos fins levam ao fim principal ou, ainda, como este fim indesejado pode ser resultado de um complexo de menores começos ou dos mais grandiloquentes inícios.
 
Percebe-se uma via expressa, dentro da narrativa, em que a suspensão da vida em prol da chegada do grand finale que comumente abarca a existência humana é apresentada com potencial de gerar a percepção sobre como o fim está presente todos os dias. Há no romance, é verdade, uma certa encruzilhada que pode afastar o leitor mais afeito aos textos com algum ordenamento cronológico; superada esta barreira, porém, encontram-se em Fim histórias divertidas e bem arquitetadas que têm motivo suficiente para estarem unidas como uma narrativa longa e não como crônicas, gênero que a autora domina há um certo tempo.
 
É este um romance que, aproveitando-se da plasticidade do gênero, faz-se com base em crônicas da vida comum para explorar a comum ideia dos finais, mas destacando os pontos incomuns da existência. Uma boa leitura que ajuda a repensar o comum, mas sem, necessariamente, exorcizá-lo, pois é nele que a vida está. É a despeito dele que a vida presta.


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Fim
Fernanda Torres
Companhia das Letras, 2013
208p.

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