Contos de Platônov: presente literário
Por Marcelo Jungle

Andrei Platônov é o escritor da piedade que escreve com um coração ressequido. Essa contradição — ternura e aridez — define toda a sua obra e exige do leitor uma disposição paradoxal: aceitar que o amor pela humanidade pode manifestar-se precisamente através da linguagem que recusa consolar. Em seus últimos contos, essa tensão atinge seu ponto mais agudo.
O amor pela pátria e outras histórias, segunda coletânea de contos do autor lançada pela editora Ars et Vita em tradução direta do russo por Maria Vragova, reúne textos do período final — escritos entre 1936 e 1946. Nessa época, já marcado pela perseguição política e pela morte prematura do filho, voltou-se para narrativas que, à primeira vista, parecem sem sentido, protagonizadas por crianças e velhos — os guardiões da verdade. Sob a singeleza desses contos esconde-se uma das literaturas mais radicais do século XX.
Em plena consolidação da União Soviética, ele parece ter buscado a salvação da alma ainda durante a vida dos indivíduos. Em ambientes ordinários, mostra que mesmo assim é possível fazer o homem enxergar-se e reconhecer os que lhe estão próximos da alma.
Obcecado em apontar as nuances que podem fazer deste mundo um lugar diferente, Platônov luta contra o próprio destino trágico. No entanto, não permite que a tragédia pessoal seja a determinante de sua literatura.
Oferece a este mundo mal-agradecido uma visão do cotidiano que une a brandura humana à face humanizada das máquinas. Em torno da tecnologia e especificamente em relação aos assuntos ferroviários, Platônov (um engenheiro eletricista, filho de um ferroviário) nos convida a enxergar nos mecanismos algo vivo, pois ali foi empregado grande esforço e dedicação do engenho humano. Se não o fizermos — e quase não o fazemos, salvo as crianças — as máquinas serão seres poderosos estranhos a nós, seus criadores. Pela concentração de conhecimento que carregam, tendem ao domínio.
No século XXI, nem mesmo quem domina a linguagem técnica compreende plenamente o poder dos artifícios. Limitam-se a urdir avisos e engendrar supostas prevenções, apenas reagindo ao que se revela incontrolável. A maioria de nós, por sua vez, reage ao incompreensível — o que apenas disfarça a sensação de isolamento. É esse mundo moderno que Platônov quis evitar em suas páginas.
A despersonalização que intuiu tem raízes mais profundas. Como se sabe, desde os experimentos revolucionários do século XVIII, a piedade não faz parte dos planos de engenharia dos que os conduzem. Populações inteiras podem ser removidas contra sua vontade, países podem ser liquidados com seu passado em nome da “liberdade” e da “nova história”. Velhos conceitos são derretidos para formar a base da nova era, elaborada e expelida sem conexão com o curso natural das coisas. E então, o passado refundido servirá à construção de novos monumentos.
Platônov não tinha nenhuma relação com esse tipo de pensamento. Ele se interessava pelo homem e sua humanidade, pela natureza e pelo amor que nos faz viver e sentir. Sua atração pela Revolução e pela tecnologia, como observou Vitali Schentalinski, vinha diretamente do coração: ele queria ajudar a todos, salvar os famintos.
Talvez Platônov nos diga: veja, aqui está o ser humano em sua forma imaculada. Isso passará. Crescemos e morremos. E se nos esforçarmos durante a vida que começa após a infância, teremos uma velhice apta para aceitar a morte. A visão do momento final parece ser o ápice desta condição. Aquele que aspira à eterna juventude torna-se um velho arrogante e, muitas vezes, cruel.
Na velhice, a alma não se cura, ela é atormentada longamente pela memória. Aceitar o tormento inevitável das memórias é o grande feito da existência. Não se trata, portanto, de buscar a felicidade, mas encontrar os caminhos já traçados na travessia inevitável. 
A sabedoria cansada da velhice situa-se ao lado da pureza sábia da infância.
Desse modo, vários contos começam falando da passagem do tempo (“Ivan recordava sua vida, desde uma manhã que se passara há muito tempo”; “No fundo de nossa memória guardam-se sonhos e realidades”; “Avdei Vassilievitch amava sua mulher e seu filho. Antes, eles também o amavam, mas, nos últimos tempos, haviam deixado de amá-lo. Por isso, a vida de Avdei Vassilievitch depois de velho tornou-se enfadonha em sua isbá”; “Nos arredores de Tiflis, não faz muito tempo, há uns vinte anos”; “Tempos atrás, antigamente, morava em nossa rua um homem com aparência de velho. Ele trabalhava numa ferraria na grande estrada moscovita”).

Platônov só se interessa pelos extremos — o início e o fim. Pouco se vê a respeito daquilo que entremeia esses extremos. Seus personagens principais são sempre crianças ou velhos.
Todavia, as crianças não precisam ler Platônov. São contos com linguagem infantil destinados a adultos. As personificações de que se vale, na maioria das vezes, são ditas por crianças. Carregam, parece, a carga de uma esperança desconhecida pela salvação dos adultos. Assim, espigas de centeio cochilam, estrelas acordam e olham, bancos de madeira são magros e sorriem.
Um bom exemplo desse propósito é o conto “Afônia”, que impressiona pela crueza de um cenário ultraviolento — a destruição de uma aldeia e o massacre de seus habitantes pelos nazistas. A história foi escrita em 1945, quando todos estavam atordoados pelo excesso de violência e maldade. Curiosamente, o fato é tratado com certa distância. O nome Afônia é um diminutivo de Afanásio ou Atanásio, que têm origem na palavra grega Tânatos, “morte”; acrescentando o prefixo a, sem, chega-se ao significado de “sem morte” ou “imortal”. As referências ao tempo, portanto, começam já no título.
Os únicos sobreviventes da aldeia são justamente o menino que dá nome ao conto e seu avô. Mais uma vez os extremos da vida — infância e velhice — estão a conviver e conversar. O menino e o avô foram poupados apenas porque “um já estava muito velho e logo pararia de viver” e o outro “ainda viveria muito”; portanto, deveria ficar só e se lembrar e contar aos outros quem fez aquilo, para que sejam temidos por mil anos (expressão utilizada para se referir à durabilidade e à imortalidade do Terceiro Reich).
O tema, como se percebe, é universal: o menino-homem, que foi obrigado a assistir ao assassinato de sua própria mãe e família; a perspectiva de tempo centrada na sua própria vida, da qual deriva todo o resto, ou seja, o próprio mundo e o que nele existe.
É uma visão muito terna da infância e retrata o modo como compreendemos o mundo antes de crescer. Afônia foi condenado a viver sozinho pelos invasores, dos quais lembraria “para sempre”. Isso é algo muito cruel, claro, mas Afônia não se lembrará deles para contar aos outros do que eram capazes, mas sim porque mataram sua mãe “com fogo”, ou seja, a maldição do Reich de mil anos não teve sucesso. A propósito, esses mil anos não passariam de pouco mais do que o dobro da idade do menino e muito menos do que a do avô.
Nem mesmo a violência desmedida ou a tirania absoluta comandam o tempo, o que vale para qualquer tipo de totalitarismo. Em suma, o tempo é dotado de absoluta autonomia. Cabe aos seres humanos a humildade de reconhecer isso para que a vida seja plena dentro das suas possibilidades.
É um dos contos mais belos do livro, demonstrando que a contradição entre piedade/secura revela-se, ao fim, como método. A ternura manifesta-se precisamente através da recusa em consolar. O amor pela humanidade é revelado através de uma linguagem que recusa o óbvio; o peito ressecado é o que aponta para o prosseguimento indelével da vida.
Em “Amor pela pátria ou a viagem de um pardal” temos um perfeito exemplo dessa ambição linguística de Platônov. Um violinista tem uma velhice tranquila com sua aposentadoria paga pelo Estado. Tem o suficiente para alimentar-se: isso parece ser bastante para aguardar a morte. No entanto, a resiliência não é o suficiente. Há uma inquietação derradeira e o violinista passa as noites tocando ao pé da estátua de Púchkin. Não aceita doações. Apenas quer compartilhar sua habilidade musical com outros humanos.
Aliás, não apenas humanos. Um pardal grisalho torna-se um ouvinte assíduo. Um dia o pardal, que tem uma vida difícil, some para uma terra onde é muito bom viver. Mas se sente desconfortável. O amigo sente sua falta. Adquire uma tartaruga, para quem toca nas noites de inverno. Solidões paralelas encontram-se: o violinista e o pardal formam uma amizade improvável. Quando o pássaro retorna à pátria para morrer sob os cuidados do amigo, Platônov nos diz algo sobre pertencimento e utilidade — sentir-se útil é condição para sentir-se vivo. 
O amor pela pátria, aqui, não é retórica nacionalista, mas a certeza de que existe um lugar onde alguém sente nossa falta. Platônov transforma conceitos abstratos em sensações concretas.
Joseph Brodsky, em seu célebre ensaio sobre Platônov, identificou no escritor russo uma ambição singular: atacar “o veículo mesmo da sensibilidade milenarista na sociedade russa: a própria língua russa — ou, em termos mais facilmente compreensíveis, a escatologia revolucionária de que esta língua está impregnada”. Essa linguagem estranha de Platônov não é ornamento — é artifício de conhecimento. Suas frases desafiam expectativas, forçando o leitor a buscar significados. Por exemplo, ao escrever que “Teriam ficado entediados, porque Afônia era a coisa mais importante do mundo”, expressa a lógica egocêntrica infantil sem condescendência ou ironia.
A estranheza tem uma consequência: obriga-nos a sentir a mesma dificuldade que os personagens têm em compreender e habitar este mundo. Brodsky chamou Platônov de “presente da Providência para a literatura russa” — expressão que captura tanto a dimensão de dádiva quanto a de atualidade permanente. É nesse duplo sentido que compreendemos estes contos como presente literário. São dádiva e atualidade: dádiva porque chegam ao leitor brasileiro em tradução exemplar, décadas após a morte do autor; atualidade porque falam diretamente ao nosso tempo de despersonalização tecnológica e aridez afetiva.
Platônov nos é contemporâneo não apesar da distância histórica, mas por causa dela — ele viu emergir fantasmas que hoje nos assombram.
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O amor pela pátria e outras histórias
Andrei Platônov
Maria Vragova (Trad.)
Ars et Vita, 2025
136 p.
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