Jorge Fernandes: o viajante do tempo modernista, de Maria Lúcia de Amorim Garcia
Por Pedro Fernandes
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Jorge Fernandes. Foto: Arquivo do jornal Tribuna do norte. |
Jorge Fernandes: o viajante do tempo modernista é para ser lido como o resultado de um esforço ou de uma paixão por uma obra ainda colocada à margem do cânone literário potiguar, muito embora, o nome do poeta seja sempre lembrado quando o assunto é tratar da integração do Rio Grande do Norte com o contexto literário derivado da Semana de Arte Moderna de 1922; contexto, aliás, que terá produzido seus abalos sísmicos em todas as regiões do Brasil, depois que os seus mentores viram no modernismo uma possibilidade de oferecer um modelo artístico e literário mais acertado com os limites de uma cultura nacional. Basta que se diga da quantidade de revistas dedicadas à poesia e à prosa (e aos costumes) surgidas quase a um só tempo que espaços como as revistas Antropofagia e Klaxon se constituíram no que passara a ser um novo centro irradiador da criação artística brasileira.
A tarefa de Maria Lúcia de Amorim Garcia, professora aposentada da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é magistral porque grande parte da obra de Jorge Fernandes encontrava-se dispersa (e em alguns casos perdida mesmo) em jornais e revistas. Parte desse material reincidia aparecer: aqueles que participaram diretamente da cena modernista paulistana; outra parte, saída em jornais no estado, muitos já extintos, não.
De maneira que, apenas o livro que o poeta chegou a organizar por conta própria e a publicá-lo - uma referência muito explícita ao trabalho de Oswald de Andrade, Primeiro caderno do aluno de poesia -, o Livro de poemas era o que estava mais à vista dos leitores.¹ É bom registrar que isso se deveu, outra vez, ao empenho de Maria Lúcia e, claro, a aceitação da obra como bibliografia para o vestibular da UFRN, em 2008, quando a instituição passar a disponibilizar livros de autores potiguares para o certame e a construir uma política editorial de resgate de algumas das suas obras.
Jorge Fernandes: o viajante do tempo modernista assinala cerca de vinte e cinco anos de dedicação de uma pesquisadora. Terá catado toda a obra dispersa do potiguar? Possivelmente não, embora o subtítulo do livro entregue um Obra completa. Sempre há, depois de outras investigações, coisas por descobrir; assim como sempre há coisas que se perdeu ao longo de tantos anos - ainda mais quando sabemos das condições paupérrimas de preservação da memória no Rio Grande do Norte. Tanto que, quando chegam pesquisadores assim como Maria Lúcia, não é exagero chamá-los de salvadores e dizer do lance de sorte que tem o escritor por o destino colocar no caminho alguém interessado em não fazê-lo cair no anonimato, ruir com as traças e a poeira dos arquivos mal guardados.
É bem verdade que grande parte da obra de Jorge, talvez pela força com que ela se assumiu, sendo ponte entre um estado situado na ponta do país e o verdadeiro núcleo de efervescência modernista, não esteve totalmente entregue ao descaso dos responsáveis pela cultura no Rio Grande do Norte. Sabe-se que Veríssimo de Melo, quem primeiro importou-se na divulgação da obra do poeta, tinha consigo um grande acervo, do qual Maria Lúcia se apropriou desde quando, em 1982, decidiu por estudar a poesia de Jorge Fernandes. Numa entrevista para o jornal Tribuna do Norte, a pesquisadora conta que foi obra do acaso o encontro com Jorge: a UFRN interessava-se em fazer uma espécie de resgate dos autores do estado e ficou com a literatura desse escritor.
Ao mergulhar no universo do poeta, Maria Lúcia descobriu que Veríssimo de Melo era homem fechado, não abria o arquivo a ninguém, e descobriu que todos os textos de entre 1908 e 1953 encontravam-se em mãos de outras figuras que guardavam o mesmo zelo de intocabilidade dos arquivos. Possivelmente, esta deve ter sido a principal dificuldade da pesquisadora e novo reforço ao esmero com que rompeu essa barreira para acessar o restante da obra. Mas, foi do contato com arquivos de jornais como A República, um dos periódicos de maior atividade de escritores do Rio Grande do Norte, e Tribuna do Norte o que favoreceu a pesquisadora a construir um material alheio aos da posse e também um artefato capaz de despertar interesses dos que se sentiam donos da obra ao ponto de permitir a Maria Lúcia o contato mais aproximado com esses materiais.
Também contou com a persistência na busca por manuscritos, grande parte inéditos. Esse contato com um arquivo mais próximo de Jorge Fernandes, obrigou a pesquisadora a se dedicar ao estudo da caligrafia para dar conta de uma letra ruim de decifrar e marcada por um vocabulário peculiar ao tempo do poeta. No livro, os manuscritos, reproduzidos um a um de um Caderno de poemas, também foram transcritos; não apenas os recortes de imprensa ou os recortes do próprio poeta num Álbum de Alice.
Maria Lúcia tem a obra de Jorge Fernandes como precursora do modernismo no estado por compreender que esta foi a primeira a explorar temas que destoavam da estética parnasiana que dominava o cenário literário da época. Era moderno falar de aviões, carros, de questões regionalistas, como a gastronomia, a exploração da grafia descontínua do verso, a crítica explícita a um tempo que não mais condizia com o espírito da época ou mesmo o exercício metapoético, isto é, a poesia falar da própria poesia. Tudo está gravado na obra de Jorge Fernandes que recebeu na ocasião em que foi apresentada os elogios de Câmara Cascudo, então um dos principais mentores de novos escritores; basta lembrar que a obra tímida de Jorge não teve qualquer recepção positiva pela imprensa do estado e precisou da leitura interventiva de Cascudo, quem mantinha uma ligação muito forte com nomes como Mário de Andrade, um dos que logo se encantaram com a obra de Jorge e certamente uma das condições para que ela ganhasse espaço em alguns dos periódicos em circulação por São Paulo.
Foi graças a Câmara Cascudo que o Livro de poemas de Jorge Fernandes ganhou forma. A publicação que terá causado uma verdadeira celeuma entre os grupos mais arrumadinhos da literatura potiguar, completando o destaque necessário que sua poesia tem fora dessa pequena quadra. Essas correspondências e também a primeira crítica estão recolhidos no livro ora apresentado.
Maria Lúcia lembra que alguns poemas de Jorge Fernandes chegaram a ganhar a inusitada forma musical e foi parar na Rádio Nacional, tamanha a boa recepção para aqueles lados do Brasil. Não havemos de que esquecer, um movimento muito incipiente, gestado por um pequeno grupo da elite nacional, deveria guardar qualquer zelo com as propostas que iam surgindo país afora a fim de poder se consolidar como um movimento de forte impacto na reviravolta da nossa literatura. Desse modo, a obra de Jorge Fernandes contribuiu para a construção desse espírito.
A prova de que a obra, apesar de lidar com ideia de definitiva poderá num futuro não muito distante albergar outras descobertas está no próprio livro ora apresentado por Maria Lúcia: o livro já estava em processo de diagramação e teve de ser parado para contemplar o aparecimento de textos então publicados num revista dessas de vida breve, Eu e você, mais um material que estava guardado a sete chaves e foi disputado aos tapas, como conta para o jornal Tribuna do Norte.
A rica edição recebe ainda o prefácio de Ana Maria Cascudo e Vicente Serejo, mais um novo estudo crítico preparado por Maria Lúcia; a pesquisadora também preparou um extenso glossário com os vocábulos mais utilizados pelo poeta. Enfim, o trabalho que deve receber o devido reconhecimento por tudo aquilo que representa para a literatura brasileira, afinal, é dessas pequenas-grandes peças que se constrói o amplo e significativo mapa de nossa heterogênea cultura das letras. Um trabalho, se não completo como se apresenta, de fôlego e o mais aprofundado que um autor da literatura potiguar mereceu até agora. Que inspire outros daqui para frente.
Notas:
1 Existiu um segundo livro com o nome de Jorge Fernandes: Contos e troças - loucuras, escrito em parceria com o poeta Ivo Filho e publicado em 1909.
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Preparamos um catálogo com inéditos de Jorge Fernandes em edição fac-similar das edições da Revista de Antropofagia, para qual foi assíduo colaborador entre os anos de 1928 e 1929. Acesse aqui.
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