O filho do cometa Halley
Por José de la Colina
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As datas existem para serem esquecidas, escreveu Jorge Luis Borges, e talvez ele tivesse razão, porque na maioria das vezes minúcias cronológicas apontam para eventos triviais que servem apenas para entreter o leitor habitual de jornais com aniversários, horóscopos, palavras cruzadas e histórias em quadrinhos. Mas às vezes pode-se dizer que coincidências na fluidez do tempo buscam moldar ou definir um destino humano. É o caso das datas inicial e final entre as quais transcorreu a vida do apreciável escritor estadunidense Mark Twain.
Em 30 de novembro de 1835, na Flórida, Missouri, um certo Samuel Langhorne Clemens, a quem a imortalidade literária só reconheceria pelo pseudônimo de Mark Twain, nasceu na exata coincidência do aparecimento do Cometa Halley. Isso lhe permitiria dizer mais tarde, meio sinceridade e brincadeiras, que era “um visitante misterioso e talvez sobrenatural vindo de outros lugares” e que um dia o elíptico cometa, que reaparecia a cada setenta e cinco ou setenta e seis anos, cruzaria o céu novamente para resgatá-lo e repatriá-lo.
Embora o homem que se tornaria um grande contador de histórias e um dos fundadores do romance moderno no seu país fosse mais conhecido como um grande humorista, sua profecia se mostrou precisa: S. L. Clemens, o já celebrado escritor Mark Twain, com seus cabelos e sobrancelhas brancos e frondosos, de igual bigode e fumante incessante de cachimbo, morreu em 21 de abril de 1910, ou seja, no mesmo ano e dias antes da revisitação do Cometa Halley pelos céus da Terra.
Filho de pai agnóstico e mãe calvinista, Clemens cresceu na pacata cidadezinha de Hannibal, na margem oeste do Mississippi, o rio que foi, a princípio, o maior e mais magnífico parque de brincadeiras disponível para o menino do interior, devoto dos prazeres da natação quando estava fora da escola, e depois o lugar onde aprendeu a pilotar um barco fluvial, e, mais tarde, o palco fluido e em constante mutação onde seus agora inesquecíveis filhos literários, especialmente os protagonistas Tom Sawyer e Huckleberry Finn, viveriam suas aventuras.
Foi navegando pelo trecho do vasto e longo rio venerado pelos indígenas como o Grande Pai das Águas, que Sam Langhorne Clemens começou a ler a grande crônica ou romance da humanidade. Já famoso, chegou a declarar a um entrevistador fascinado: “Toda vez que encontro um personagem interessante, seja em livros de história ou romances, sinto como se o conhecesse desde antes, de quando nos encontráramos nas correntezas ou nas cidades às margens do Mississippi.”
As outras escolas da vida do jovem Sam incluíram a impressão gráfica, a mineração e o jornalismo. Aos doze anos, e já órfão de pai, ele começou a ganhar a vida como aprendiz de tipógrafo no jornal de Hannibal. Depois de praticar tipografia por um tempo, partiu em busca de aventuras lucrativas em outro grande rio, este muito distante e bem ao sul da fronteira estadunidense: o Mississipi.
Mas sequer conseguiu cruzar a primeira fronteira: durante a viagem de Nova Orleans, e com breves estadias ocasionais em cidades onde trabalhou como tipógrafo para gráficas e jornais locais, aprendeu a pilotar embarcações fluviais daquelas pitorescas movidas a vapor e com rodas de pás que eram simultaneamente hotéis, cassinos e casas de shows flutuantes, constantemente indo e vindo pelas costas imponentes do Old Man River.
Foi dessa maneira que obteve uma licença profissional para pilotar embarcações de navegação fluvial, sua única licença do tipo; e mesmo que tenha feito pouco mas intenso uso disso, com ela adquiriu a experiência que lhe permitiria escrever anos depois sua robusta, embora talvez um tanto fantasiosa, crônica, Life in Mississippi. Já se orgulhava de conseguir dominar, em cada viagem, como dizia, “dois mil quilômetros de águas sonolentas ou furiosas e traiçoeiras” quando veio a eclosão da Guerra Civil em 1861 (que, como todas as guerras, foi consideravelmente incivilizada) e quase encerrou a navegação comercial no grande rio e forçou o jovem a mudar o curso da sua vida e mais uma vez voltar a buscá-lo em terra firme.
Com profunda aversão ao racismo, à escravidão e à guerra, decidiu retirar-se do conflito e em diligências atravessando planícies abaladas pelo uivo dos coiotes, cidades e vilarejos empoeirados abalados pelos tiroteios dos pistoleiros locais, rumou para a montanhosa Nevada, onde compartilhou os acampamentos dos buscadores de prata nos leitos dos rios. Logo, tendo fracassado como garimpeiro, voltou-se para o jornalismo local e escreveu deliciosas crônicas sobre a vida cotidiana nos acampamentos de mineração. E foi uma dessas crônicas, a de uma corrida de sapos entre os homens daqueles ajuntamentos: “The Celebrated Jumping Frog Calaveras County”, que subitamente o lançou à fama entre os leitores de jornais e lhe permitiu descobrir sua vocação como humorista.
A partir daqui o anônimo faz-tudo Samuel Langhorne Clemens começa a ser abandonado para receber o célebre escritor Mark Twain.
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Durante toda a sua vida, Mark Twain preferiu fumar em cachimbos feitos com sabugo de milho. Em suas fotografias e retratos pintados, ele é quase sempre visto pitando (sob o pesado bigode que ia do preto ao grisalho e ao branco) um daqueles populares dispositivos de queima de tabaco que muitos de seus personagens também fumavam, começando com os dois jovens imortais nos quais ficcionalizou sua juventude: Tom Sawyer e Huckleberry Finn, e, além disso, os pilotos de embarcações fluviais, os trapaceiros de saloon-bar, os garimpeiros de riacho, os condutores de diligências, os jornalistas e tipógrafos provincianos, vaqueiros e pastores de ovelhas, os lendários pistoleiros, os caçadores de coiotes, mendigos do campo, os peles-vermelhas sonolentos pelo uísque, os pastores beberrões, os negros escravizados ou libertos, e até mesmo algumas damas sulistas... e muitos outros seres que povoariam uma obra que, pode-se dizer, rivaliza com o caudaloso Mississippi, ao lado do qual, em sua região do Missouri, S. L. Clemens nasceu.
Quando Clemens viu que sua crônica recém-publicada, “A célebre rã saltadora do Condado de Calaveras”, começava a quase imediatamente ganhar popularidade pelas páginas de entretenimento da imprensa, o que favoreceu-lhe pela primeira vez com algum dinheiro como escritor profissional; quando, após o imenso sucesso de suas primeiras crônicas e contos, se convenceu de que, finalmente, depois de ter sido pouco mais do que um faz-tudo ocupado, havia descoberto a vocação da sua vida; e quando, em busca de um memorável nom de plume de apenas duas sílabas, adotou o de Mark Twain (que, tirado de sua experiência como navegador fluvial, significa algo como “marca dois”)¹, foi comprar cerca de vinte cachimbos com fornilho de sabugo, porque achou que não poderia mais praticar separadamente a vida, a atividade de escrever e fumar. Seus pulmões pagariam o preço, mas, como disse, emitindo um espesso jato de fumaça entre duas tosses vigorosas que subiam em espirais para engrossar sua auréola: “Abandonar esse vício é moleza. Veja o meu exemplo: parei de fumar mais de mil vezes.”
Seus divertidos e, às vezes, ferozes textos para jornais e suas turnês de conferencista altamente remuneradas pelos estados da União lhe renderam os títulos, entre outros, de “o orador língua de prata do Pacífico” ou “o humorista mais rápido do Oeste” e o converteram em um dos iniciadores da grande tradição estadunidense do escritor como figura pública que deve heroicamente manter seu status estelar e brilhar tanto em seus escritos quanto na vida cotidiana.
Já casado em 1870 com uma honorável senhorita de Hartford, Connecticut, e vivendo como um burguês honrado pelo resto da vida, ele cultivou seu próprio mito de grande animador de tertúlias alcoólicas (onde cantava em coro o hino pagão “Oh whiskey let me alone, oh whiskey let me alone! Remember I must go home!”)², e de assíduo jogador de bilhar e como um piadista incontinente e feroz. E como não perdia um único domingo na igreja, podia dizer ao pregador, sem cerimônias, que o sermão era plagiado, visto que ele, Twain, tinha um livro contendo tudo o que ali havia sido dito e, em resposta ao protesto do bom eclesiástico, presenteava-o com... um dicionário da língua inglesa.
Sua popularidade como humorista e vivaz contador de anedotas gerou uma legião de imitadores mercenários que, por todo o país, se apresentava nos palcos de palestras como “o autêntico, o brilhante, o inimitável Mark Twain” para recitar os artigos deste como se os estivessem improvisando na hora. E ele, que tentava ser um “escritor a sério”, para produzir uma obra literária de alta qualidade, certamente superior aos artigos jornalísticos baseados em boas ou medíocres anedotas, sentia-se prisioneiro de seu mito de autor humorístico e tentava evitá-lo, mesmo que, na tentativa, recorresse a outra anedota.
Em um de seus artigos mais célebres, ele fingiu diante de um entrevistador imaginário que não era Mark Twain mas um impostor, irmão gêmeo deste, pois a mãe, confusa ao dar banho nos dois quando crianças, fora descuidada e, consequentemente, deixara o verdadeiro Mark Twain, aquele que estava destinado a ser um gênio do humor, se afogar na banheira. Ou, anos depois, declarava aos seus fãs ávidos por saber cada vez mais sobre o ídolo: “Muitas pessoas, que na minha opinião não têm outra coisa a fazer senão ler minhas elucubrações, me escreveram dizendo que, se eu publicasse minha autobiografia, poderiam lê-la se suas ocupações assim permitissem. Em vista desse interesse frenético, creio que devo atender às demandas do público, embora não as considere justificadas.” E quando finalmente publicou uma substancial autobiografia, esta revelou-se, a seu pesar, contaminada por anedotas twainianas e mitos twainesco.
Mas, na realidade, ele se tornaria um grande escritor com livros que, como Vida no Mississippi, As aventuras de Tom Sawyer e, principalmente, As aventuras de Huckleberry Finn, são obras-primas pioneiras da moderna narrativa em língua inglesa.
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Em 1867, após publicar seu primeiro livro aos 32 anos, A célebre rã saltadora do Condado de Calaveras e outras histórias, assinado sob o pseudônimo agora permanente de Mark Twain, percebendo que sua vida finalmente tinha sentido, pois estava predestinado a ser um autor popular — isto é, de acordo com o rótulo vigente, um autor Best-seller —, o escritor decidiu mergulhar de cabeça e se dedicar sem sobressaltos à profissão literária.
Um periódico pediu-lhe que relatasse a viagem de um grupo de viajantes estadunidenses pela Europa e pela Terra Santa, e disso resultou um segundo livro de grande sucesso em 1869: Os inocentes no exterior, que satirizava o turismo ingênuo e esnobe dos seus conterrâneos da época e culto ao prestígio do Velho Continente.
Depois do casamento, quando iniciou uma vida familiar estável e comum, Twain continuou, por vezes, com seus artigos, para não perder seus fãs mais devotados que o citavam e recitavam em bares, a embelezar sua escrita com um toque de uma vida raivosa, embriagada, boêmia e supostamente blasfema. Dois anos depois desse regime tão ordeiro e pacífico (que lhe deu “a curva da felicidade”), uma barriguinha notável em retratos elegantes, um sulista vestido e calçado de branco, mas fumando seu eterno cachimbo de sabugo, publicou seu terceiro Best-seller: Roughing It, que é um esplêndido relato de sua juventude aventureira pelas planícies e aldeias do Far West.
Nesse livro, entre outras páginas tão barrocas e enérgicas quanto divertidas, há um momento narrativo magistral, quase quevediano, sobre o coiote do deserto; é um belo exemplo da arte twainiana de descrição/narração, de prosa em movimento e, ao final do fragmento, de uma gradação progressiva dos efeitos:
“O coiote é alongando, esguio, magro e lamentável-aparência esquelética, com uma pele de lobo cinza esticada sobre ele, uma cauda razoavelmente espessa que sempre se curva com uma expressão desesperada de abandono e miséria, um olhar furtivo e maligno, e um rosto longo e afiado, com lábio ligeiramente levantado e dentes expostos. Ele possui uma expressão sempre furtiva por toda parte. O coiote é uma alegoria viva e pulsante da Carência. Ele está sempre faminto. Ele é sempre pobre, sem sorte e sem amigos. As criaturas mais vis o desprezam, e até as pulgas o abandonariam para habitarem um velocípede. Ele é tão sem espírito e covarde que, mesmo enquanto seus dentes expostos fingem uma ameaça, o resto de seu rosto está se desculpando por isso. E ele é tão feio! — tão magro, e nervoso, e de pelo grosso, e lamentável.
Ao vê-lo, ele levanta o lábio e mostra os dentes, e então se desvia um pouco do caminho que estava seguindo, abaixa um pouco a cabeça e faz um longo e suave trote, olhando por cima do ombro para você, de vez em quando, até que esteja fora do alcance fácil de uma pistola, e então ele para e te examina cuidadosamente; trota uns cinquenta metros e para novamente — outros cinquenta e para novamente; e finalmente o cinza de seu corpo deslizante se mistura com o cinza da artemísia, e desaparece. Tudo isso quando você não demonstra nenhuma hostilidade para com ele; mas se agir assim, ele desenvolverá um interesse mais vivo por você, e instantaneamente eletrificará seus calcanhares e colocará uma quantidade tão grande de espaço entre ele e sua arma que, no momento em que se der conta, verá que precisa de um rifle Minie, e no momento em que você o colocar na mira, precisará de um canhão raiado, e no momento em que você disparar contra ele, verá apenas nada mais e além de um raio excepcionalmente longo poderá alcançá-lo onde está.”³
Se este excerto é um preciso retrato zoológico preciso, também o é, no mesmo livro, esta fina caricatura de um ser humano: a de Jack Slade, um lendário pistoleiro do oeste e artista do suspense ameaçador:
“Às vezes, Slade deixava seus inimigos intocados por semanas e meses, sem reconhecer a ofensa ou olhá-los com aquele sorriso inquietante nos lábios. Alguns acreditavam que ele fazia isso para que suas futuras vítimas confiassem nele e pudesse atacá-las de surpresa. Outros, no entanto, afirmavam que Slade `tentava fazer o inimigo durar’, da mesma forma que uma criança faz um doce durar mais para apreciá-lo, saboreando-o antecipadamente.”
Não faltaram biógrafos e críticos para opinarem que o feroz humorista Mark Twain, que era mais um observador cético e implacável da vida, que havia “abrandado” pelo fato de ter se casado com uma nova-iorquina abastada, pelo hábito resignado de assistir ao sermão da paróquia aos domingos e pela vida lenta sob o lema bordado e emoldurado “God Bless Our Home” (Deus abençoe nosso lar) pendurado na sala de estar. Quem sabe...
A verdade, talvez, é que, até o fim de seus dias, Twain produziu, entre muitos artigos de mero entretenimento, um número surpreendente de páginas moderníssimas, já à frente da prosa narrativa que seria produzida no século XX por autores como Ernest Hemingway (especialmente em seus contos), Henry Miller (em seus romances/ memórias), William Saroyan (em A comédia humana e em seus contos), J. D. Salinger (em O apanhador no campo de centeio), Truman Capote (em Bonequinha de luxo e mesmo em A sangue frio), Norman Mailer (especialmente em suas crônicas) ou E. L. Doctorow (em Ragtime). Ele é um notável precursor da literatura moderna: crônica e romance, linguagem literária e oral, muitas vezes se fundem nele e, sim, já era casado, já estava acostumado a escrever na maciez de sua cama, já usava pantufas, quando escreveu suas três obras-primas: as crônicas Vida no Mississipi, e, em particular, o grande romance moderno e intensamente vívido As aventuras de Huckleberry Finn.
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Em 1876, Samuel Langhorne Clemens já era definitivamente o Mark Twain célebre pelos seus artigos e pelo sucesso literário e de crítica que obteve com Os inocentes no exterior e outras obras. Sua esposa pediu-lhe que escrevesse coisas mais honestas, isto é, sem irreverências ou sem atingir, especialmente a alta cultura, a igreja e as boas maneiras; exige que, quando entrevistado e fotografado, não fume o cachimbo de sabugo de milho que o faz parecer tão simplório, mas se usar tal objeto pelo menos que seja cachimbo de marfim, algo que corresponda melhor ao posição de um respeitável autor estadunidense, dono de uma casa no estilo do Panteão, jardim frontal bem-cuidado e ampla varanda onde ela, a honorável Sra. Clemens — ”por favor, não me chame de Sra. Twain!” –– oferece o prestigioso chá das cinco a outras distintas damas do lugar.
Então, um dia, vendo no espelho os primeiros fios grisalhos em seus espessos cabelos negros, em seu espesso bigode preto, ele percebe com resignação rabugenta que, aos 41 anos, já está entrando na maturidade, numa vida estável, na decência, e que, portanto, durante sua sesta cada vez mais sonolenta, pode se entregar àquele luxuoso exercício sentimental: a nostalgia dos verdes anos, de uma infância lembrada como uma ilha do tesouro há muito perdida, mas da qual talvez algo possa ser recuperado graças à magia da literatura.
E então, fumando furtivamente seu execrado cachimbo, Twain começa a escrever seu primeiro romance, no qual sonhará consigo mesmo como o sonhador, travesso e adorável Tom Sawyer, que viverá para sempre em uma pequena cidade igualmente idealizada no sul dos Estados Unidos, às margens do Missouri.
As aventuras de Tom Sawyer é um dos grandes romances que mitificam a infância como uma idade de ouro na qual, dentro da vida cotidiana comum e prática, pulsam os sonhos e as lendas de uma não menos mítica e épica inocência e a felicidade plena da “primavera da vida”. O enredo um tanto disperso e nem sempre bem construído é um aglomerado de cenas narrativas e está repleta de travessuras domésticas e escolares; de fugas da escola puritana para se banhar no rio ensolarado mais próximo: o Missouri — poderia ser outro? —; de idílicos romances com moças de bochechas rosadas, cachos loiros e sonhos cor-de-rosa, de aventuras realizadas em sonhos e na realidade: a fuga e os jogos de pirataria numa ilha fluvial, as clandestinas visitas noturnas ao cemitério, combate com algum vilão (nesta ocasião, um folhetinesco e assassino índio de pele vermelha “Injum Joe”), a labiríntica caverna em cujas profundezas sombrias um enorme tesouro aguarda o retorno à luz, e um happy end talvez mais compensador e satisfatório para o autor e os personagens do que para o leitor.
As aventuras de Tom Sawyer é um livro talvez um pouco ingênuo, mas, em última análise, cumpre magnificamente a sua intenção de se inscrever na mitologia da infância ressuscitada como a idade das maravilhas. “Era minha intenção, disse Twain, “que os adultos se lembrassem com prazer de como foram um dia, e como pensavam, sentiam e falavam, e em que aventuras emocionantes às vezes se envolviam.” E embora ele também afirme que combinou no protagonista características de pelo menos três garotos que conheceu em seus “verdes anos”, o leitor logo descobre que Tom Sawyer é o mesmo Samuel Langhorne Clemens, que, com seus extraordinários poderes narrativos e sua ampliação do anedótico, deseja retornar à sua própria infância sonhadora.
Mas se o evocativo S. L. Clemens domina como a criança sonhadora e divertidamente travessa no romance que dá título ao livro, traços de malícia e ironia muito característicos de Mark Twain, como em um dos primeiros capítulos em que Tom explora outras crianças, colocando-as para trabalhar pintando uma cerca, enganando-as, fazendo-as acreditar que não é trabalho, mas diversão, ou como as muitas páginas em que o narrador cita longamente projetos de redação escolar reais ou supostos, em um tom moralizante e enfadonho, ou como os episódios em que ele satiriza os métodos repressivos de uma educação puritana.
Além disso, e principalmente, à medida que o livro cada vez mais se expande outro personagem ganha uma presença secundária no livro: um menino preguiçoso e vagabundo, um órfão precoce, um fora-da-lei quase amaldiçoado, o menino travesso, mas ainda sincero, da periferia da cidade, o amigo e aventureiro proibido, mas muito amado, de Tom, que no próximo romance será o protagonista indiscutível e também o narrador em primeira pessoa: Huckleberry “Huck” Finn.
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As aventuras de Huckleberry Finn, publicado por Twain nove anos depois de As aventuras de Tom Sawyer — das quais, em certo sentido secundário, seriam a continuação —, constitui um romance fluvial em que o Mississipi é o personagem central, a grande metáfora ativa da trama e a linha da muito viva correnteza da narrativa. Tudo no livro se move como um rio verbal no qual a história principal se ramifica em narrativas menores, não menos vívidas. A prosa dinâmica segue a poderosa corrente do Mississippi através do Vale do Missouri e do Rio Ohio, passando pelas cidades dispersas às margens do “pai das águas”: os vilarejos construídos nos tempos da difícil colonização da vastidão da América do Norte e as pequenas sociedades do Oeste, ainda quase inteiramente desprovidas de lei e justiça formais, mas já com igreja, escola, bar e cadeia erguidos com madeira ainda fresca.
O trio principal de personagens do romance é composto pelo menino Tom Sawyer, o negro Jim (simplesmente Jim, pois é um escravo, ou seja, um quase-ninguém), e o menino Huck Finn, o protagonista, delegado pelo autor para carregar a voz narrativa com toda a cor de um testemunho real e intensamente vívido, trazido à vida em um estilo de escrita fluido que parece mais adequado à audição do que à leitura. “A grande conquista de Twain”, escreveu Italo Calvino, “é um estilo de alcance verdadeiramente histórico: a introdução da língua falada estadunidense na voz de Huck Finn como seu recitador.”
Huck, concebido aleatoriamente por um bêbado ocioso, é um pária social, um espécime contraditório de canalha ingênuo que encontramos adotado desde o primeiro capítulo pela viúva Douglas, uma rígida tirana da piedade que tem a pretensão de reeducá-lo, afastá-lo da vadiagem, das tentações arriscadas de uma vida excessivamente etérea. A jornada épica fluvial que é o eixo da ação do romance, seu fluxo verbal paralelo ao seu fluxo aquático, começa quando Huck, escondendo-se de seu pai irrisório, mas temível, e também escapando do modo de vida “correto” na casa da viúva, procura escapar em uma canoa.
Em uma ilhota no Missouri, ele encontra um amigo infeliz, o gentil e supersticioso Jim, que por sua vez teve que fugir porque seu senhor, como punição sabe-se lá por quê, ia revendê-lo aos traficantes de escravos. Instintivamente simpático por amizade e amor à vida livre, Huck decide acompanhar Jim em sua fuga e ajudá-lo a alcançar algum território “abolicionista”, isto é, um estado sem regime escravagista, onde Jim possa viver em liberdade pelo resto de seus dias. Para despistar seus perseguidores, os fugitivos constroem uma jangada com a qual navegarão o grande rio à noite e visitarão secretamente as cidades ribeirinhas durante o dia, onde correrão riscos ainda maiores do que nas águas, por vezes, ferozmente turbulentas.
Ocasionalmente acompanhados e explorados por dois canalhas que fingem ser um rei e um duque no exílio, Huck e Jim encontram uma grande variedade de personagens em sua viagem fluvial: homens e mulheres de todas as idades, em todos os sotaques do inglês americanizado. Quando, ao final do livro, que — como diz Jorge Luis Borges — “abunda em admiráveis evocações da manhã, do pôr do sol e das pobres margens do rio”, a viagem se completa (isto é, uma viagem circular, com retorno ao ponto de partida), o leitor fica com a impressão de que, como na leitura do Dom Quixote, de Cervantes ou do Cândido, de Voltaire, ou Kim, de Kipling, viu e ouviu a passagem de um inumerável elenco de personagens que, de maneiras ora divertidas, ora assustadoras, parecem representar a totalidade dos costumes da raça humana.
Twain teria começado a escrever seu grande romance, abandonando quaisquer pretensões sérias ou profundas, visto que já em um “Aviso” inicial assinado por um hipotético primeiro autor, um certo G.G., comandante da artilharia, ele nos alertara: “Quem tentar encontrar um motivo nesta narrativa será processado; quem tentar encontrar a moral da história será banido; quem tentar encontrar um enredo será fuzilado.”⁴ Mas logo o tema, que sem dúvida o lembrava de sua juventude, o lançaria em uma narrativa muito diferente: um romance espirituoso, ao mesmo tempo realista e irônico, e uma espécie de Comédia Humana à moda estadunidense.
Foi assim que ele criou o primeiro grande romance moderno da literatura estadunidense, uma obra seminal e fundadora, como Ernest Hemingway declararia mais tarde: “Toda a nossa ficção moderna vem de Mark Twain, de seu livro As aventuras de Huckleberry Finn. Toda os textos verdadeiramente vivos que alguns de nós já conseguimos escrever vem desse romance. Antes de Huckleberry Finn não havia nada. E desde então não houve nada tão bom.”
Esse romance de Twain é simultaneamente um picaresco como Lazarillo de Tormes, um romance on the road e aprendizagem existencial como Pé na estrada ou Os vagabundos do Dharma, de Jack Kerouac, e uma crônica da vida no Oeste e no Sul dos Estados Unidos em meados do século XIX, como Vida no Mississippi, do próprio Twain.
As muitas edições ilustradas do livro geralmente apresentam o jovem protagonista esfarrapado, descalço, usando um chapéu de palha rústico, destacando-se contra o pano de fundo do velho e até então imortal rio, ostentando um cachimbo no canto de seu sorriso torto e malicioso... É o mesmo velho cachimbo barato de sabugo de milho. É o amuleto mágico secreto com o qual, fumegando como a chaminé de um barco fluvial, o escritor se libertou da identidade de um certo Samuel Langhorne Clemens e voltou a ser aquele pícaro Huck Finn que ainda venceria Mark Twain e que continuaria a viver em sucessivas e fascinadas multidões de leitores.
Notas da tradução
1 “Marca dois” (mark twain) era um termo usado pelos pilotos de navegação fluvial para indicar uma profundidade de duas braças, considerada segura para a navegação.
2 Em tradução livre: “Oh uísque me deixe em paz, oh uísque me deixe em paz! Lembre-se de que preciso ir para casa!”
3 A tradução do excerto é livre a partir do original em língua inglesa.
4 O excerto é da tradução de José Roberto O'Shea (Zahar, 2019).
* Este texto é a tradução livre de “Hijo del cometa Halley”, publicado aqui, em Letras Libres.
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