Tonio Kröger de Thomas Mann: a educação sentimental

Por Pablo Sol Mora


Heinrich Campendonk, Mann und Maske, 1922. Kunstmuseum Bonn.


Ah, Tonio Kröger! Se eu tivesse que escolher uma única obra que definisse minha formação sentimental e artística, certamente seria esta. Acho que a primeira obra que li de Thomas Mann (e a que mais reli) foi A morte em Veneza, que eu poderia facilmente incluir aqui, mas a obra que marcou minha adolescência foi mesmo Tonio Kröger, que o crítico alemão Marcel Reich-Ranicki considerou “o conto do século XX”.
 
A edição em que li intitula-se, a rigor, Mario y el mago y otros relatos (Origen/OMGSA, México, 1983).1 Pertence a uma coleção de livros de bolso, História Universal da Literatura, que não tem uma apresentação muito boa (capa dura cor de vinho com letras douradas na lombada e na capa), grandes tiragens (17.000 exemplares) e, até pouco tempo atrás, ainda lotava liquidações e sebos. Mas foi nesta coleção que li pela primeira vez, além de Thomas Mann, James Joyce (Retrato do artista quando jovem), que eu também deveria ter incluído nestas memórias, e Gustave Flaubert (Madame Bovary). Para desfigurar ainda mais o volume, assinei-o grosseiramente com uma caneta preta que parecia estar derramando tinta. A data é maio de 1993, quase cem anos após sua publicação original em alemão (a obra foi publicada em 1903).
 
Thomas Mann tem sido uma constante admiração desde então. Li-o aos poucos, e a vantagem de uma obra tão extensa como a dele é que sempre há um grande livro para descobrir. Logo depois de ler A morte em Veneza e Tonio Kröger pela primeira vez, li Os Buddenbrook, que, aos dezoito anos, me deixou boquiaberto. Anos depois, aventurei-me com A montanha mágica, um daqueles romances em que você gostaria de ficar preso nele e vivê-lo (talvez por sua extraordinária descrição da passagem do tempo no sanatório onde a ação se desenrola, tempo que passa imperceptivelmente entre curas de repouso, refeições suntuosas, crises metafísicas, caminhadas curtas e inatividade). E, justamente quando eu pensava que Mann não poderia me surpreender mais, li Doutor Fausto, o que eu corretamente considerava sua obra mais selvagem. Apenas uma dessas três obras justificaria a vida inteira de um romancista. E ainda preciso ler a tetralogia de José e seus irmãos!
 
Como A morte em Veneza, Tonio Kröger é uma novela sobre o artista, o escritor, e ambos quase poderiam formar um díptico (Aschenbach poderia muito bem ser um Kröger mais velho). Ambos são também uma espécie de tratado ficcionalizado sobre estética. No entanto, não são tratados, mas ficções, pois Mann — cujas ideias abstratas às vezes obscurecem momentaneamente seus personagens ou enredos — era um romancista completo, isto é, alguém que pensa e se expressa ficcionalmente. Durante anos, Tonio Kröger foi meu credo estético. Ser um artista, um escritor, era o que ele dizia que eu era. Como no caso de Franz Kafka, mais tarde tive que admitir que existem outras maneiras de ser um, e que essa era a maneira de Thomas Mann, um “burguês desencaminhado”, para usar a famosa expressão.
 
O conflito central em Tonio Kröger é a incompatibilidade entre a vida burguesa tradicional e as exigências da arte. O protagonista é filho de uma grande família de comerciantes, como Mann, mas logo intui que seu caminho tomará uma direção completamente diferente. Ele gosta de ler Schiller e escrever poesia. Tem um grande amigo, Hans Hansen, que é tudo o que ele não é — sociável, tranquilo, espontâneo, popular — e a quem ele adora. Há, é claro, uma jovem, a loura Ingeborg Holm, por quem Tonio está perdidamente apaixonado, pois ela pertence a um mundo despreocupado e feliz, onde nem Schiller nem a poesia importam. Desde a adolescência, o protagonista tem plena consciência de que está destinado a realizar grandes feitos que o distanciarão cada vez mais do mundo de Hans e Inge, mas sempre haverá nele uma nostalgia latente por esse mundo, que ele simultaneamente ama, inveja e desdenha.
 
Tonio segue seu caminho e se torna escritor: “Entregou-se inteiramente ao poder que lhe parecia o mais sublime sobre a terra, a cujo serviço se sentia chamado e que lhe prometia honra e grandeza: o poder do espírito e da palavra, que reina sorrindo sobre a vida inconsciente e muda. Com sua juvenil passionalidade entregou-se a tal poder e ele o recompensou com tudo quanto tem para dar, tomando dele implacavelmente tudo quanto costuma pedir em troca. [...] Então, com o tormento e a soberba do conhecimento veio a solidão.”2 O tema do pacto fáustico permeia toda a obra de Mann: arte e conhecimento, sim, mas a que preço? Nenhum dom artístico vem gratuitamente.
 
O núcleo intelectual da novela é a conversa de Tonio com sua amiga, a pintora Lisavieta Ivánovna. Quando ela tenta defender a profissão de Tonio, ele perde a paciência e declara sua convicção mais profunda: “A literatura não é profissão alguma, e sim uma maldição, fique sabendo. Quando essa maldição começa a ser perceptível? Cedo, terrivelmente cedo. Numa época em que ainda deveríamos viver em paz e concórdia com Deus e o mundo. Você começa a se sentir estigmatizado, em misteriosa contradição com os outros, os seres comuns, normais, o abismo de ironia, descrença, oposição, conhecimento, sentimento que o separa das criaturas humanas e se abre mais profundamente, você está sozinho e daí em diante não existe mais nenhuma compreensão.” O parágrafo está selvagemente sublinhado na minha edição, como seria no caso de alguém convencido de ter descoberto uma verdade absoluta. Ao final da conversa, Lisavieta, irônica, faz seu diagnóstico: “Você é um burguês perdido em descaminhos, um burguês desencaminhado.”
 
O episódio final da novela, como o de A morte em Veneza, é quase mágico, epifânico. Tonio foi a um balneário na Dinamarca e lá, de repente, numa saída à noite, vê ou pensa ter visto Hans e Inge. Eles mal mudaram. São os mesmos: belos, frívolos, despreocupados, felizes. Tonio quase desmaia ante sua visão. Pensa por um momento em se aproximar deles, mas não o faz. Então, recolhido em seu quarto, recapitula sua vida: “Mas o que tinha acontecido durante todo aquele tempo em que ele se tornara o que era agora? Rigidez; vazio; gelo; e espírito! E arte!... [...] viu-se roído de ironia e espírito, vazio e paralisado pelo conhecimento, meio desgastado pela febre e pelo frio da criação, inconstante e sofrendo de crises de consciência, atirado para cá e para lá entre extremos crassos, entre santidade e cio, refinado, esgotado de exaltações frias e artificialmente escolhidas, perdido, devastado, martirizado, doente — e soluçou de arrependimento e saudade.”
 
Não sei quantas vezes li este livro, entre os dezessete e os vinte anos. Sei que suas palavras eram a Bíblia para mim e que seus ditames ecoavam longamente em minha cabeça: “porque só alguém muito obtuso acredita que ao criador é permitido sentir”; “quem vive não trabalha [...] é preciso morrer para ser um criador por inteiro”; “e expiava o erro de ter se permitido colher uma folhinha, uma única, do loureiro da arte sem por isso pagar com a vida”; etc. O adolescente, para não mencionar o “artista quando jovem”, é um indivíduo particularmente sério e dramático, e palavras como essas vão direto ao âmago de seu ser. Estava convencido de que, de fato, para se dedicar à arte, era preciso renunciar à vida — isto é, ao que Mann entende aqui por vida, uma existência burguesa convencional — e que não havia reconciliação possível. Com a certeza veemente e o ímpeto ardente — e a ingenuidade, é claro — que só se pode possuir nessa idade, o adolescente não tinha dúvidas.
 
Depois dos vinte anos, parei um pouco de ler Tonio Kröger, embora, se alguém me perguntasse sobre os livros que mais influenciaram minha vida, eu o teria mencionado sem hesitar. Gradualmente, e quase sem perceber, ocorreram algumas mudanças que variaram minha atitude em relação ao livro: a primeira —infelizmente! — a consciência progressiva e quase indolor de que eu não era Thomas Mann nem Tonio Kröger, e que tanto os grandes sacrifícios como as grandes recompensas descritas estavam bastante fora do meu alcance; o segundo, o advento do humor e da leveza, a desdramatização de uma concepção excessivamente séria de arte e literatura (talvez algumas coisas não fossem tão sérias; minha vocação artística entre elas, certamente); o terceiro, a descoberta de que outras concepções delas existiam.
 
Detestaria dar a impressão de agora acreditar que superei Tonio Kröger e que, à distância, vejo isso, não sem condescendência, como uma espécie de excesso adolescente. O que não posso deixar de ver com ironia benevolente é o adolescente que se identificou plenamente com o protagonista. Lembro-me muito bem daquelas noites — as noites em que os Hans Hansen e as Inges saíam para se divertir — trancado no meu quarto, lendo o livro com fervor e, para completar minha embriaguez romântica, ouvindo repetidamente o Trio para Piano nº 1, Op. 8, de Brahms.
 
É curioso e paradoxal: várias das coisas que a obra contrastava com a vocação literária (o cerne da vida burguesa tradicional: estabelecer-se, casar, ter filhos, constituir família) e, de uma forma ou de outra, dei prioridade absoluta à literatura, mas sem renúncias grandiloquentes ou drama, e talvez mais por hedonismo e comodidade do que para salvaguardar uma suposta vocação.
 
Acho que nunca conseguirei ler Tonio Kröger sem me comover. Parafraseando as últimas palavras da carta de Tonio a Lisavieta, que conclui a obra, espero que esse amor também não seja usado contra mim: “Nele existem anseio e inveja melancólica e um pouquinho de desprezo e uma bem aventurança toda casta.”
 
 
Notas da tradução
 
1 Na edição brasileira mais recente, Tonio Kröger foi publicado com A morte em Veneza, como comumente tem sido por aqui. Já Mário e o mágico sai, independente. É possível ler uma resenha das duas novelas aquando da publicação mais recente, aqui.
 
2 A tradução deste e todos os excertos de Tonio Kröger referidos ao longo do texto é a de Mario Luiz Frungillo (Companhia das Letras, 2015). 


* Este texto é a tradução livre de “El Tonio Kröger de Thomas Mann: la educación sentimental”, publicado aqui, em  Letras Libres.

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