O deserto e sua mente, de Jorge Baron Biza
Por Pedro Fernandes
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Jorge Baron Biza. Foto: Arquivo Clarín |
Com quantos bons livros se faz um escritor? Jorge Barron Biza reafirma que um é suficiente. O deserto e sua mente, seu único romance, foi publicado pouco antes do suicídio que fechou um ciclo de horrores iniciado desde quando o pai e a mãe desenvolveram o mesmo destino. A morte do pai se desenrola depois de atacar a mulher com ácido, episódio que se encontra na gênese do livro em destaque. Aos sedentos do nosso tempo transbordante de autoconfissões, um aviso: as tintas autobiográficas não limitam o desenvolvimento ficcional. Barron Biza reafirma com este romance o que há muito sabemos e é dessas certezas firmadas como a terra é redonda: vida e obra são extensões distintas, embora não exista obra literária em que uma porção da vida nela se infiltre; seus materiais derivam das múltiplas possibilidades do vivido.
Depois de uma longa estadia entre os cuidados médicos em Montevidéu, Eligia procura o que a medicina poderia oferecer de mais avançado no seu tempo para tentar restabelecer ainda que minimamente a face perdida por ataque de ácido desferido pelo marido numa altura em que os longos vinte e oito anos de um divórcio se colocava à mesa fora do campo da possibilidade. A atitude radical de Arón é presenciada pelo filho que há muito morava com o pai e é o jovem quem logo se afirma, numa dessas fatalidades que nos empurram para responsabilidades que jamais estiveram no nosso horizonte, o responsável em cuidar do périplo daquela que ele sempre se refere pelo uso distanciado do nome próprio.
Esse distanciamento, mais que um efeito narrativo capaz de demarcar o embrutecimento dos vínculos familiares, parece ser a estratégia de um filho que a todo custo procura escapar do inescapável: a influência dos pais na sua própria identidade. O convívio entre Mario e Eligia é justificável por outros caminhos que não os de uma maternidade; ele acata o destino porque este o agarra numa passagem da vida em que as perspectivas de futuro se encontram encravadas na mesma região do próprio acaso e o cuidar pode lhe servir como a travessia necessária até chegar à perspectiva que lhe falta, quer dizer, é o forçado amadurecimento que Mario se autoimpõe como um recruta que procura a zona do front. A saída dessa escolha é sempre imprecisa: ou o recruta descobre a perspectiva obnubilada ou padece antes disso.
Se a decisão autoimposta de cuidar de Eligia não é, por sua natureza, o que coloca em questão a tentativa de fuga empreendida por Mario, o mesmo não é possível dizer do vínculo com o pai. Reiteradamente quer se impor a imagem positiva de Arón, dada sua expansividade e altivez, a luta na qual investiu toda a juventude contra o regime ditatorial uruguaio, mas o filho não consegue articular isso com a fúria violenta que resultou no destino trágico padecido por Eligia, ou antes disso, pelas repentinas atitudes ao longo do seu convívio que denunciavam a vacilante natureza temperamental de Arón. Mario titubeia entre essas duas faces aparentemente inconciliáveis, quando afirma em passagens como “o velho tinha sido violento, cruel, furioso, mas fez as coisas com paixão, ariscou-se por ideias, gastou fortunas no combate a ditadores, depois de queimar outras maiores em putas europeias.”
Mas, certa feita, quando lembrado de cuidar da sua afeição ao álcool para não refazer o mesmo destino do pai, o narrador, depois da notícia do suicídio de Arón que reanima certa afinidade entre os dois, reflete: “Não lhe deixaria [para Arón] nenhuma porta entreaberta […], reconstituiria a mim mesmo com a mesma tenacidade que Eligia, contrariando todos os desígnios de Arón. Eu seria o Anti-Arón; teria meu próprio jeito de ser forte, de desafiar destinos. Minha indiferença não seria uma dívida filial.” Quer dizer, a justificativa para o papel de cuidador de Eligia é encontrada de alguma maneira na persistência dela com os dolorosos tratamentos de reconstituição dos tecidos tragados pelo ácido; Mario busca reconstituir seu interior para que não se confunda com o pai, o que é duplamente dificultoso: não é possível negar, por mais que se queira, o curso biológico da vida; e as situações vividas reiteram continuamente que os modos do pai eram sua própria alternativa de sobrevivência no mundo.
Essa busca se desenvolve em três trilhos: no convívio com Eligia em Milão, na etapa indefinida de tratamentos que derrete o restante de patrimônio da família; nas peripécias com uma prostituta, conhecida no pequeno bar próximo à clínica, abrindo-se dois regimes no plano da narrativa — um diurno, marcado pela monotonia da vida numa enfermaria, e outro noturno, vivido sempre ao sabor do acaso e regado a muito álcool. A terceira linha reside na tentativa de organização dos acontecimentos — quando situado na escrivaninha do antigo apartamento onde viveu com Arón enquanto espera a venda do imóvel — através da escrita de suas memórias, o conteúdo do romance que lemos.
Distante da ordem familiar, do país onde se fixou desde criança e que aprendeu a ter como seu, Mario descobre que nenhuma das relações humanas se baseia em princípios que não os do interesse particular, quase sempre financeiro, e que a violência, externa ou simbólica, é o meio de se impor e, em alguns casos, de não perecer. A atitude do taciturno, do confiante nas intenções alheias, toda vez o colocam em apuros; e nem é o caso de estarmos em contato com uma personagem ingênua, alheada, ou incapaz de agir com desenvoltura ante a realidade do mundo. Os impasses entre os dois regimes que modulam as duas primeiras linhas da narrativa conformam a dimensão do contraditório que o próprio narrador demonstra incapaz de explicar quando confrontado com as atitudes de Arón. Sandie — uma das mulheres com quem Mario desenvolve algum primeiro interesse de convívio amoroso, pelo menos da parte dela — explicaria isso por algum conceito freudiano, tão em voga na época e a solução barateada para quaisquer dos dilemas mundanos, como certa feita, ela limita, confiante, que todos os homens estão encalacrados nas diretrizes do complexo de Édipo.
Além da diversidade de personagens com a qual Mario interage nas suas noites de Milão é imprescindível neste romance, a maneira como narrador engendra o seu convívio com a cidade, uma clara extensão no plano geográfico das suas condições interiores, enquanto se penitencia para não repetir o destino trágico da família, especialmente garantir alguma reaproximação com Eligia, com extensa biografia na vida pública desde a democratização do Uruguai, e se afastar das qualidades negativas de Arón. Milão comparece sempre como uma câmara de espelhos e toda investida da personagem pela urbe é tão dificultosa quanto a primeira vez em que vara a noite vagueando o caminho de regresso à clínica; é a cidade que o recusa, como esclarece o simpatizante de Mussolini, o magnata e pai de Sandie, para quem cada qual deve habitar por toda a vida o lugar onde nasceu, lição que a cidade aprendera tão bem que se recusara ser o que Roma ou Veneza havia se tornado. Milão é sempre estrangeira, mesmo com quase dois anos de estadia na cidade; no regresso da mais radical das noitadas, quando acompanha Dina ao San Silvestro, assim recorda o narrador: “O carro arrancou numa daquelas direções desconcertantes que, para meu espanto, a cidade sempre guardava.”

Mas, o complexo mosaico de Milão, as contradições de suas figuras e daquelas que Mario evoca enquanto retrabalha os sinais que desencadearam o nefasto episódio que lançou a todos para um voraz purgatório encontra sua síntese na arte de Giuseppe Arcimboldo, o pintor milanês que passou à história pelos retratos compostos de elementos ora afeitos à identidade do representado ora radicalmente diferentes. Mario conhece Sandie entre um grupo de jovens que estão internadas na mesma clínica de Eligia para se desfazerem dos seus pomposos narizes, o que merecem da parte do narrador, o uso depreciativo de bruxas. Filha de um magnata do tecido, Sandie desenvolve algum interesse, talvez em parte exótico por homem da América, e o arrasta para uma noitada em casa com a família; ele o pai da jovem desenvolvem uma larga conversa por assuntos diversos, mas o entrecho desenvolvido ante a tela O jurista o que nos interessa aqui para amarrar o que dissemos até agora. O impacto da pintura em Mario:
“Nunca, no meu constante interesse pela arte, eu tinha visto uma ‘anamorfose psíquica’ tão intensa, de modo que o mesmo ponto de vista e as mesmas pinceladas representassem, a um só tempo, a mais despojada inocência e o cálculo frio e impiedoso. Para o espectador, nem era preciso mudar o lugar de observação se quisesse perceber a diferença; o esforço devia ser interior. Quam perscrutasse esse retrato devia força em si uma mudança de espírito, de atenção, se quisesse ver os dois aspectos do mesmo olho pintado. Espantou-me que esse rosto imaginado quatrocentos anos atrás conservasse o poder de revelar dois estados de sinal moral opostos e sobrepostos. Reconheci no segundo olhar que o retrato emanava — frio e impiedoso — uma matéria tão concentrada no mal que tinha perdido a consciência de si mesma e exalava aquela mesma qualidade maligna de não poder se reconhecer que eu até então atribuída às rochas, aquela perversidade além das possibilidades humanas, instrumento da transrazão, que de súbito eu encontrava encamada desde tempos remotos, como se as rochas configurassem, por trás da carne sem penas, uma aterradora e oculta referência ao deserto.”
O instante de iluminação, bem se percebe, ocupa o cerne de existência do próprio romance — seu título é O deserto e sua semente. É neste gênero, que Mario se encontra livre para conduzir o exercício de investigar a si e o outro, evidenciando o que nos é próprio e compartilhado, o que não é explicado pelo visível e nem pela ordem da ciência. A descoberta pela interioridade por mais que esta se notasse nas várias lacunas deixadas pelo ácido na face de Eligia acontece instantes depois de ouvir as dificuldades de Sandie em se reconhecer na face inaugurada com o nariz esculpido em sala de cirurgia. Esse impasse, como vimos, é um dos motes, se não o principal, do romance de Jorge Baron Biza: entre o que se mostra e o que se oculta, o que está na ordem da aparência e da essência. A resposta, não considera, como a princípio parecia acreditar o jovem Mario, entre se decidir por uma ou por outra.
A pintura de 1566 mostra um meio corpo que se impõe pela vestimenta solene, mas as mesmas vestes deixam descoberto o que constitui esse corpo, livros e papéis, enquanto o esperado rosto realista é um compósito de carnes mortas, peixes e frangos. Um jurista era a autoridade que interpretava a lei, escrevia livros e códigos; o que a pintura designa, então, se nota entre a composição das vestes e do corpo representado. A face, porém, realça o que se oculta: os gerentes da lei ou eram mortais, se admitirmos que a tela é representação realista do jurista alemão Ulrich Zasius, ou, numa conjuntura universalista, se o jurista já não estava morto. Em todas as dimensões, a tela dialoga com os materiais do romance, literal e simbolicamente: nela estão entrevistos o périplo de Eligia pela recomposição do rosto desfigurado, o que só é possível através de contínuos enxertos de tecidos alheios aos da face, inaugurando uma face outra que não a do passado; simbolicamente, os sobreviventes nesse périplo estão no limbo, vivo-e-mortos, depois de perderam sua aparência. No universo engendrado aqui, também não existe essência. Ou antes, a essência é um conjugado, como demonstra a pintura de Arcimboldo, com a aparência.
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O deserto e sua mente
Jorge Baron Biza
Sérgio Molina (Trad.)
Companhia das Letras, 2023
232 p.
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