O retorno d’O mameluco, de Amélia Rodrigues
Por Renildo Rene
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Na vida, como na arte, as peripécias caminham às vezes indiscretas, silenciosas, até que se revelem profundamente desiguais para impedir o trajeto feliz. Mesmo após ter se destacado em vida, por suas contribuições à educação e à imprensa do recôncavo baiano, Amélia Rodrigues teve o seu primeiro romance publicado em livro apenas em 2022, quase um século após sua morte. Agora, O mameluco, que estava restrito à sua publicação periódica no jornal Echo Sant’Amarense (onde os capítulos foram publicados em 1882), consegue edição exclusiva — e o seu panorama cálido sobre a nação, remanescente de uma mente que pensa a identidade civil dentro de um projeto autoral, torna-se mais tangível ao leitor brasileiro.
Nesse livro que chega a nós sob esforços admiráveis da pesquisadora Milena Britto e do selo editorial paraLeLo13S, há um quadro de personagens que se inicia com o viúvo português Paulo de Avilez e a sua filha Ramira, educada nos princípios do evangelho de moça pura e de funcionalidade da esposa útil. Os dois vivem em uma fazenda às margens do rio Paraguaçu, próximo a região do oeste da capital baiana, onde a paisagem do “terreno riquíssimo de diamante” é lócus para ambições políticas de mineração e exploração de poder em populações campestres.
Ao ver dois prisioneiros enviados arbitrariamente para a guerra, como “impostos de sangue” e “contingentes” para sustentar a posição do coronel José de Souza, Ramira implora ao pai que interceda por aquelas famílias. Após a negociação entre os coronéis, a libertação de Fernando Santa Luz revela que sua identidade de mameluco seguia a hierarquia da época: os que não pertenciam à classe branca senhorial só ganham destaque com a mediação do pai e da filha, mesmo tendo papel relevante no enredo. Assim, o primeiro encontro entre Fernando e Ramira surge sob o signo da cordialidade e do contraste entre o coração ingênuo da moça e o rapaz submisso à compostura senhorial:
“O mancebo foi solto. Enlevado, num arroubo sublime de gratidão, ele contemplava a menina como o nauta contempla a primeira estrela de bonança que surge na tempestuosa noite. [...]
Fernando caíra de joelho aos pés de Ramira.
— Senhora dona — disse ele no tom sublime das grandes comoções. — Nada sou, nada valho, mas pode dispor de minha vida.”
Daí certa unilateralidade entre esses personagens desenvolve-se, a priori, por um sentimento de fidelidade permanente aos donos do poder, tratado a nível de gratidão eterna. Em que pese as inúmeras cenas que Fernando ou sua irmã Magdalena aparecem, por exemplo, apertando e beijando as mãos da família portuguesa, ficam evidentes os sinais explícitos de um clientelismo que se impõe de forma assimétrica nas relações, mesmo com os irmãos já gozando de liberdade civil. Ainda que o leitor atual reconheça essa postura como humilhante e nefasto, o romance trata apenas como uma “dívida moral” que se estende ao inconsciente sentimento de servidão determinante no destino dos protagonistas. O texto não deixa nos esquecermos disso quando repete várias vezes a verdadeira alcunha: são os “protegidos”, cuja condição desencadeará uma sucessão de conflitos que transformam a narrativa numa história sobre o autoritarismo no sertão baiano.
O espaço da fazenda de Avilez ocupa, por outro lado, as dimensões variáveis do funcionamento político do sertão e dos interiores durante o Segundo Reinado. Vale dizer que o “relógio” ali funciona diferente de outros romances que se passam na corte e/ou nas capitais de províncias, e os problemas gerais da Nação são geralmente notados indiretamente, quando chegam aos habitantes como notícias a serem comentadas. Mas nem por isso a história deixa de ser menos brasileira: a região do Paraguaçu mensura um tempo decorrido que é um “murmúrio monótono e triste” porque a mudança física é mínima e, simultaneamente, porque observam-se outros imbróglios de nível social transfigurando-se no desenvolvimento pessoal de cada “sertanejo”. Os temas da mestiçagem e da escravidão estão entre esses imbróglios tratados a partir das relações familiares e dos modos de vidas coletivos de cidadãos não-brancos, de seus pensamentos e ações.
E o que seria, de fato, esse mameluco? No senso comum, é o indivíduo que ascende da união entre um branco e um indígena; para Milena Britto, no posfácio de 2022, ele representa um elemento fruto de duas raças “desiguais” ocupando “uma posição ambígua que configura a identidade nacional brasileira” no folhetim. E se com isso remetemos ao próprio mameluco da história, descobrimos que na verdade eles são dois —os irmãos Santa Luz — e isto cumpre uma outra organização temática. Sob o ângulo de Amélia Rodrigues, as configurações civis dos negros e indígenas antes da República se desdobram em outros níveis que não aqueles das três raças, trazendo uma estrutura que afasta o indígena da insígnia do passado ficcionalmente histórico e glorioso como trazido pelos românticos e mais próximo da desigualdade que está a formação brasileira em sua compreensão de hibridismo.
E essa ambivalência se dá principalmente no retrato da mestiçagem em pontos muito significativos do próprio texto, mesmo que o discurso do romance ainda carregue pontos de inflexão de seu próprio período e posição. Dos trinta e três capítulos que compõem o todo, existem dois em especial que pegam no ponto nevrálgico da consciência de escrita e narração sobre o(s) outro(s). No capítulo treze, quase todo escrito em aspas, Magdalena conta a sua origem e a de Fernando e a de seus pais a Ramira, envolta de um tom quase-folclórico sobre a vida dos mamelucos e caboclos. Mais tarde, quando o romance dá outras voltas, no capítulo vinte e três, a vida dos negros na Senzala de Paulo de Avilez (de alguma forma, quase esquecemos que este senhor mesmo sendo tratado como bom-feitor ainda é um escravista) é contada e temperada sob o aspecto de uma iminente revolta.
A construção da representação imagética das raças é cerceada por um ponto de vista levemente deslocado, arrisco dizer. Sinuosamente, as muitas linhas daquelas páginas se aproximam do pensamento ingênuo de Ramira, arrastando um traço arbitrário e preconceituoso próprio da época. Ou seja, indiretamente, esse discurso da “sinhá” é assumido dentro do próprio corpo do romance e traz uma defesa da libertação que parece mais acompanhar a defesa de um espírito superior de quem se põe em defesa dos escravos.
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Voltemos ao romance, então. Ainda orbitando as relações e intrigas da fazenda, Magdalena envolve-se em um triângulo amoroso com os dois preceptores de Ramira, o mestre Luiz de Argollo e a mademoiselle Marie Fleur. O interesse de Argollo pela “morena sertaneja”, no entanto, provoca um desapontamento tão rompante na francesa — por considerar-se a candidata ideal com o dote da mulher “europeia e civilizada” — que a violência aparece subitamente como estado emocional em reação à predileção surgida.
Mais à frente, os aspectos do ciúme doentio são elevados a outros patamares na ascensão de Luiza, uma das escravas mucamas de Ramira, na trama. Ao testemunhar o interesse romântico de Fernando pela “sinhá”, a sua “paixão tornou-se em ódio” e ela jura uma vingança iniciada com a injúria infame sobre o mameluco ao senhor Paulo, resultando no afastamento do casal protagonista. Sem saídas, e surtindo efeito contrário ao esperado pela trama ardil, o moço abandona a fazenda, a irmã e o amor em uma carta que defende o primado de sua função de criado, aproveitando a ocasião para se voluntariar como combatente de guerra. Se até esse momento fica claro que o dilema enfrentado por todos os personagens cruza a funcionalidade da autoridade frente ao sentimento, a trama dá um hiatus temporal e transforma-se em algo ainda mais interessante para o leitor.
Depois da virulência escrava trazida na primeira metade, a Guerra do Paraguai é o outro tema de plano de fundo que é retomado das páginas iniciais, sob o prisma da barbaridade enquanto uma defesa patriótica. Vejamos um pouco de como está contextualizada a trama de O mameluco. Ela inicia em 1864, quando a ofensiva Paraguaia obriga o Brasil a recrutar compulsoriamente vários combatentes e isso vem a luz criticamente diante da arbitrariedade com o que o alistamento foi guiado pelos senhores e políticos, escolhendo prioritariamente os escravos e/ou indígenas (situação igual a de Fernando, lembremos). Logo depois, a segunda metade cruza o final da Guerra (após a separação do casal), em 1870, e é a partir daí que esse traçado transforma a visão tradicional sobre o embate.
Ao retornar como Capitão, nosso protagonista encarna o semblante de sobrevivente e vencedor da Guerra, sob a qual sua memória tenta elaborar os anos de ausência por outro tipo de existência que possa substituir o “amor pela pátria” daqueles campos bélicos: “— Há três anos, sinhá — disse ele, envolvendo-se num olhar apaixonado —, que só ouço o troar da artilharia e o gemido dos moribundos: pague-me com as melodias todos estes sofrimentos.”
A relação dramática na construção da civilização empregada por Amélia se cumpre justamente em situações e casos meramente românticos, para os quais os conflitos amorosos e a hostilidade com os mestiços se integram em um discurso crítico da Guerra como “um cancro social que rouba mil preciosas existências”. E nessa composição, o discurso ficcional traz uma dupla percepção da experiência com o passado: é a imagem do sobrevivente dividido com a existência após a disciplina militar; e é também a pena da escritora, na década de 1880, tentando retornar a agonia daquele mundo em uma disputa ideológica sobre os sacrifícios constantes que os dirigentes da nação exigem para firmar o patriotismo sob o signo do militarismo — vale notar que o romance de Amélia começa a ser publicado uma década após aquele período, o que por si só já revela um princípio de revisão histórica a ser desenvolvido décadas mais tarde pelos historiadores.
De uma guerra a outra
Acompanhamos aqui uma produção literária que torna relevante esse tipo de modelo para questionar também as tentativas de “limpeza étnica”, e ao dar acabamento significativo de como aqueles dois principais temas em discussão na década de 60 — a Guerra e o início da discussão em torno da libertação — modelam a vida de suas personagens, talvez seja por isso que o estado narrativo se transforma em um estilo novo. Outras situações surgem para tornar imperativo os significados sobre liberdade e sobrevivência neste infame país chamado Brasil.
Nesse ambiente de hierarquias, a solução de Amélia é colocar sob seus personagens escolhas contrárias a algumas conjunções gerais das doutrinas do romantismo. Se a tensão da guerra produzida no início se resolve com a elevação heroica do mameluco Fernando no recôncavo, a impossibilidade de Luiza em superar as falhas de seu plano (somado a infelicidade de sua condição) torna ela a conspiradora de uma revolta escrava em Santa Luz, ao lado de Pai Cosme, que irrompe o romance com alguns capítulos que se passam na senzala durante a união dos escravos. Aparentemente, há um duplo gume nesse processo: ao mesmo tempo que aponta para o aparecimento de uma insurreição no enredo, a intenção crítica demarca parcialmente o discurso da liberdade à vingança pessoal, nesse caso do ciúme passional da escrava pela união restabelecida do mameluco com a sinhá.
O sentido dessa expressão da escritora reproduz um certo tipo de consciência comum à prosa oitocentista sobre a revolta dos negros, ao qual a sociedade branca descrevia como um iminente terror o pensamento contra ideológico do pensamento independente dos escravos. Basta lembrarmos da atitude paternalista de José de Alencar em peças como Mãe e O demônio familiar, ou a defesa do bem-estar da casa grande dada por Joaquim Manuel de Macedo nas três novelas reunidas em As vítimas-algozes, que mesmo se tratando de narrativas abolicionistas não abandonaram certa torpe moral.
Poderíamos sugerir, resguardando as limitações de cada projeto e seus alcances estéticos, que um dos mais próximos de Amélia — em sua iminente crítica ao sistema de escravismo — seria o Machado de Assis, ao qual os contos e romances sugerem que a trajetória de escravos, libertos ou não, está quase impossibilitada de alçar independência, sem intervenção do Estado, por estarem inscritos nesse panorama que tem como ordem a reificação. Em termos de opções estilísticas, seria Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, um companheiro adequado para O mameluco, pois já vimos como aquele inscreve outro caminho narrativo ao denunciar a lógica patriarcal, enquanto os escravos são alçados ao plano narrativo de forma autônoma.
Se continuamos a atenção para esse sentido da mestiçagem e da presença nos escravizados no romance, não há como escapar das várias oscilações em que as páginas de Amélia trazem pois ao mesmo tempo que problematiza os imbróglios da servidão e a arbitrariedade dos senhores, utiliza um vasto campo de classificações raciais e discursos liberais no plano da linguagem, reproduzindo a mentalidade implacável da defesa da abolição de modo muito conformista. Ramira e Fernando, Luiz e Magdalena são os casais no epicentro da obra da autora e, como “habitantes do sertão”, relembram certo questionamento que devemos realizar sobre como observamos o discurso da formação da identidade civil no país e suas nuances ao longo de nossa literatura.
Quando o livro também retorna
O mameluco não se trata de uma obra tardia: fora publicado periodicamente na década de 1880 — no mesmo ano que Memórias póstumas de Brás Cubas sai em sua primeira edição tipografada e um ano após O mulato, de Aluísio Azevedo —, já reproduzindo a emergência sentida pela abolição, que viria seis anos mais tarde. Esse processo de sondagem determina o fluxo do romance ainda a um período anterior, pois ao recuperar as memórias da Guerra do Paraguai associa a fazenda do Paraguaçu como microcosmo de retroalimentação da violência incitada pelo sistema político brasileiro. A revelação acontece em uma natureza formal estritamente comum, mas são dos episódios tão reconhecíveis que a escritora reflete outras dimensões do questionamento sobre nossa cidadania, e integra isso a uma linguagem forçosamente crítica mesmo que séculos depois nos pareça ainda problemático.
Na verdade, se essa sondagem do universo do recôncavo baiano oscila nas várias projeções de violência trazida pelo latifúndio brasileiro (ou melhor, como este a reproduz), a força simbólica da denúncia literária torna eloquente outro tipo de criação. São temas, por assim dizer, caros a uma linguagem aguda que se faz projeto-base da autora em seu movimento histórico sobre os rumos da formação nacional, nos anos finais do escravismo. Ao mesmo tempo, não se sentirá perdido o leitor se acompanhar esse precioso romance como parte da linhagem da literatura abolicionista e da escrita por mulheres, em nosso país. São linhas furtivas, dissonantes e contemporâneas entre si, que revelam como diversas camadas de expressão constituem as ideias em permutação de nossa história.
Nem coincidência, muito menos ironia do destino: ao desfiar os bárbaros espólios da Guerra do Paraguai, esboçar um retrato de mestiçagem nas relações brasileiras e se incluir no rol de mulheres que escrevem, o caminho literário de O mameluco se restringiu ao jornal baiano. E se até certa medida esse e outros são projetos obliterados — porque ficam perdidos nas estantes da historiografia — livros como o de Amélia são a oportunidade única de nos encontrarmos novamente com um século que também revelou figuras revolucionárias. Continuar esquecendo-as é pactuar, em certa medida, com a mesma instituição que as apagou e não ter o senso crítico de encontrar a novidade contemporânea no garimpo do passado, naquilo que se escondeu por muito tempo. E que agora tem a oportunidade circular entre nós com o vigor da longevidade. E, isso, ainda não é nem o final de feliz...
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O mameluco
Amélia Rodrigues
Paralelo 13S, 2022
220 p.
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