A coerência na literatura infantil de Graciliano Ramos

Por Maria Heloisa Melo de Moraes


Folha de rosto da 1ª edição. Desenho de Nelson Boeira Faedrich.



Referido sempre como um escritor de linguagem enxuta, despojada, Graciliano Ramos representa para a literatura brasileira uma literatura adulta, voltada para a temática da condição humana, universalizando-se a partir de personagens e cenários regionais. O autor de romances como Vidas secas, Angústia, São Bernardo, com personagens densos e marcantes, é, no entanto, pouco citado como autor de histórias para crianças. Suas produções voltadas para o público infanto-juvenil, porém, apresentam uma proposta ideológica que em anda difere do que caracteriza sua literatura para adultos: a opção por temas universais, questões sociais, a apresentação do ser humano com suas verdades, suas mazelas, seus medos.

Em 1937, logo que sai da prisão, Graciliano escreve A terra dos meninos pelados, que recebe neste mesmo ano o prêmio de literatura infantil do Ministério da Educação (MEC). É publicado em 1939, pela Editora Globo. Em 1944 publica Histórias de Alexandre (Editora Leitura), apresentado como literatura infanto-juvenil. Em 1962, a Livraria Martins lança Alexandre e outros heróis, reunindo estas duas obras e mais a inédita História da República, sátira à História do Brasil. Vamos focalizar os dois primeiros livros.

Alexandre e outros heróis é uma coletânea de pequenos contos baseados no folclore nordestino, nas quais o humor é o traço marcante. Nela o autor alagoano faz sua incursão pelos contos folclóricos, que lhe serviram de inspiração, aproximando-se assim da literatura mais popular. Nele o linguajar nordestino predomina. Destaca-se também nessa obra o humor, contrastando com a sisudez, marca definidora do estilo de Graciliano em suas obras mais conhecidas. É esse humor, a veia satírica, aliada a uma linguagem leve, embora ainda econômica e enxuta, que dá a esse livro um direcionamento para o público infanto-juvenil.

É em A terra dos meninos pelados, porém, que encontramos um Graciliano desconhecido para muitos de seus leitores, aqueles que se ativeram a suas obras mais conhecidas. É o Graciliano do nonsense, da fantasia onírica, do lirismo simbólico. Aliados a uma linguagem clara, a uma narrativa rigorosamente cronológica, tais elementos dão a essa obra uma leveza e, ao mesmo tempo, uma profundidade temática que a incluem na literatura infantil brasileira de qualidade. Diríamos mais: Graciliano, assim como Monteiro Lobato, antecipa em algumas décadas o direcionamento estético-ideológico que seria a referência da atual literatura brasileira para crianças e adolescentes: o questionamento dos valores sociais, a proposta crítica.

O livro conta a história de Raimundo, menino calvo, com um olho azul outro preto, e que por isso era maltratado em sua cidade. Autodenominando-se Dr. Raimundo Pelado, ele, porém, cansa de ser alvo constante de chacotas por ser diferente. Certo dia, mesmo tendo a lição de geografia para estudar, resolver ir procurar Tatipirun, um lugar “que ele tinha adivinhado, mas nunca tinha visto”, onde todos os meninos são calvos e têm um olho azul outro preto. Encontra uma terra onde os mortos aplainam-se e as curvas estiram-se “como uma linha” para ele passar; uma terra que se altera para lhe dar conforto, não há noite, não faz calor nem frio, e as pessoas o tratam como igual. As crianças aceitam e não o veem como um diferente. Embora, como todas as crianças, discutissem e discordassem, em Tatipirun todos tinham voz  e direito de serem ouvidos. Depois de vivenciar tais experiências em um mundo de inclusão, Raimundo retorna a sua terra, Camabaracá, pois tinha de estudar sua lição de geografia, mesmo sabendo que lá voltaria a conviver com a intolerância e a discriminação.

Temos aí o papel exercido pela literatura infantil: as crianças fogem do real através da imaginação, mas precisam retornar à realidade, que nem sempre se coaduna com o imaginário por elas experimentado.

O que vemos nessa obra, todavia, é muito mais que um livro infantil questionando os valores sociais. Nela encontramos, de forma simples e acessível, a coerência ideológica de um autor cuja literatura expressa sua indignação com as injustiças, com a sociedade que discrimina, menospreza os direitos e a cidadania.

Se Pasárgada foi para Manuel Bandeira o lugar utópico do prazer realizado, do qual o eu-lírico não fala em voltar, a Tatipirun de Graciliano é  a visão da felicidade possível só no imaginário, a qual tem de ser abandonada em nome de uma realidade que precisa ser enfrentada. Mas é também, para o leitor infantil, a percepção de que a realidade pode ser mudada, e um mundo melhor pode existir. Raimundo Pelado é o Patinho Feio que volta a suas origens, diferentemente do de Andersen.

A leitura dessa obra de Graciliano Ramos, pela coerência com a sua literatura adulta, apresenta-se, pois, para o leitor criança, como uma importante iniciação para a leitura posterior desse grande escritor.

Notas:
A terra dos meninos pelados, de fato, foi o primeiro texto do gênero infanto-juvenil, publicado em 1939; seguiram-se Histórias de Alexandre (1944), Alexandre e outros heróis (1962) e O estribo de prata (1984).

Em dezembro de 2003, o conto A terra dos meninos pelados foi adaptado para TV pela Rede Globo.

Preparamos aqui o texto de A terra dos meninos pelados para leitura.


Maria Heloisa Melo de Moraes é professora da Universidade Federal de Alagoas. É autora de Cor, som e sentido: a metáfora na poesia de Djavan (Editoria HDV), Poesia Alagoana hoje: ensaios (EDUFAL). Este texto foi publicado inicialmente na revista Graciliano. Ano 1, n 1, set. 2008.

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